segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pequeno Assovio

Me sinto pequeno, diante de cada harmonia que a princípio soa simples, mas a cima de tudo soa sincera. É como se todas as minhas tentativas fossem meros falsetes, com extremo esforço posso atingir um purismo técnico, porém vazio de criatividade. No momento em que penso isso, caminho sobre a praia. Minhas calças jeans e minha camisa vermelho sangue chama atenção no meio de tantos corpos seminus.
Paro. Olho para o mar e vejo as linhas poéticas que surgem de cada onda. Ele zomba de mim. O mar zomba de mim. Brincalhão como é, não poderia fazer algo diferente naquele momento.
- Oi.
Olho pro lado e lá está ela. Pequena menina branquinha, singular em cada gesto, mulher atraente aos olhos comuns, muito atraente.
- Nunca pensei que fosse te ver aqui.
- Nem eu.
- Como assim?
- Só quero dizer, que nunca me imagino caminhando na praia. Sei lá, é estranho pra mim. Mas tudo ultimamente anda tão estranho, que agora já não faz diferença.
Ela sorri. Ri. Sua risada é um pouco mais disfarçada do que a do mar. Mas aquilo me soa como um sorriso. Vejo os dentes e a boca, tudo fica em silencio naquele momento. Quantas vezes eu beijei aquela boca? Era salgada como o mar? Talvez só no final. Ela me pergunta:
- Mas afinal quais são suas crises atuais?
- Inutilidade poética em pleno auge criativo.
Belos sons de gargalhada. Maravilhosos sons de gargalhada.
- Como assim? O que isso quer dizer?
- Não sei, é essa a questão. Não quer dizer que eu não tenha feito nada, mas tudo soa como inútil. Para poesia, pro nosso mundo até que tem algum valor.
- Você sabe que não vejo sentido nenhum nessa conversa.
- Sério? Pensava que não. Qual foi a última vez que a gente se viu?
- Sei lá, faz muito tempo. Você tá mais maluco do que antes, acho que foi por isso que a gente não deu certo.
- A gente não deu certo pela utilidade que eu almejava naquela época. E agora que tudo finalmente se torna inútil, eu não vejo sentido.
- Meu Deus, as vezes isso cansa sabia? Você nunca pensou em relaxar, em ser normal?
- Normal? Corta essa vai. Você sabe o tanto que isso é furado.
- Sei, mas quem sabe dizer essas coisas não te ajuda a voltar pro eixo.
- Eixo, eixo, eixo, eixo, exu, exu.
- Acho que já vou indo.
- Não espera, senta aqui do meu lado.
Ela usava biquíni, o loiro do cabelo refletia bem o sol. A pele tinha um contraste bom com aquilo e eu despenteado como sempre sentia o suor escorrer, grudento, simplesmente grudento. Mesmo assim me atrevia a estar ali, ao seu lado, na ousadia da troca de presenças.
Sentamos. Foi bom. Realmente bom saber que existia alguém ali do meu lado, olhando o mar zombeteiro e que a chacotas do espelho já não seriam secretas. O que ela pensava, o que ela pensava dele, o que pensava de mim? O que eu penso sobre ela? Quem dera fosse a única, mas foram tantas que minha esquisitice teimou em afastar. Se afasto tanto porque será que atraio? Consiste numa teoria de polos opostos e complementares?
- Você não tá com calor com essa roupa?
- Sim.
Olho pra ela bem nos olhos. Azuis, porém bastante sérios.
- Pra você o que é conversar comigo nesse exato momento?
- Estranho, como sempre foi.
- Entendo.
- Entende nada, finge que entende.
Eis o meu primeiro sorriso do dia. Ela gosta, gostou, sei que gostou. Maria Flor é o nome dela. Nos conhecemos a dois anos atrás, o nosso relacionamento durou quatro meses e vinte e sete dias. Poderia considerar como cinco meses, mas prefiro ser exato. Na verdade o seu nome é Marcia ou Lidia, não sei, não me lembro mais. Mas esses são os nomes mais recorrentes na minha cabeça, provavelmente é algum deles.
A atração carnal era ponto forte, mas nunca se tratou disso. Ela cantava. Nem a canção materna era tão reconfortante como a voz dela. Talvez pela ausência materna considerasse isso. Postura de mãe não tinha. Era daquelas eternas crianças que aprende as brincadeiras da vida adulta e sabe levar muito bem desse jeito. Fez muito bem para mim, como todas de uma certa maneira fazem. A minha boa influência como sempre foi somente no início, depois o caos.
Gostava de acariciar os cabelos do meu peito, era fanática nisso. Eu tinha tara em seus pés. Depois que terminamos cheguei a sonhar algumas vezes, somente com eles. Desperto novamente com frases perdidas.
- Sabe o que é? Quando ti vi, pensei em passar reto. Percebi que você estava distraído e provavelmente nem ia me ver. Mas não sei, alguma coisa me atraiu pra você, magnetismo, e eu bancando de pedaço de metal. Ai que raiva de falar essas coisas.
- Relaxa.
- Enfim, já deu pra notar mais ou menos como anda sua vida, mas a minha também não tá boa.
- Eu nunca disse que minha vida estava ruim.
- Ai, viu? É por isso que eu te odeio.
- Eu sei e acho que você tem razão.
- E por isso também.
Tapei a boca dela com minha mão. Os olhos refletiam indignação, mas lá no fundo agradeciam, pois sabiam que aquela forma de comunicação a muito tempo já estava falida. Faliu para humanidade toda. O gesto de carinho nos cabelos loiros veio como sucessão, a mão ainda continuava na boca, os olhos me diziam tudo o que precisava. Pediam para não fazer aquilo, mas denunciavam a entrega. Enfim ambos cederam, ela deitou no meu colo e eu continuei com o carinho nos cabelos.
Queria perguntar para o mar agora, o que ele achava de tudo isso. Será que ainda achava engraçado. Eu ao menos, sentia que aquele gesto não fora um falsete, suspeitava que poderia haver algo de poético ali. Cabe ao julgamento de cada um, ao meu, ao seu, ao do mar e ao dela é claro.
Ficamos ali durante muito tempo, ela no meu colo e eu lhe fazendo carinho. Por aquilo eu já conseguia compreender porque sua vida estava ruim. Estava ruim, pelo mesmo motivo que a vida de todo mundo está. Pela impossibilidade de uma nova forma de comunicação que nutra corpo e mente e que seja para todos. Não havia o que fazer, a não ser dizer que continuasse tentando.
Ela sabia também que eu continuaria flutuando em minha orbita especifica, mas que aquilo ainda poderia ter uma utilidade para todos nós. Uma autentica utilidade poética.
Passado muito tempo, nos levantamos. Para não quebrar o protocolo, disse um pedido de desculpas com o olhar. Nunca terei a certeza de qual foi a resposta. Ela simplesmente se virou e foi embora, decidida sobre alguma coisa. Alguma coisa realmente importante.

Eu do meu lado, voltei a caminhar na praia e ainda continuei a me sentir pequeno. Só que as notas já estavam todas embaralhadas em minha cabeça. Arrisquei um assovio e acreditei que deu certo. Fui emendando os fraseados e não parei mais. Continuo até hoje e compartilho sempre que posso.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Queria pular da ponte

Mário caminhava sozinho pela rua, seu estômago doía e sua cabeça estava um pouco zonza. Mesmo assim continuava caminhando. Tinha acabado de sair da casa de sua amiga, dormira lá devido a toda bebedeira da noite passada e nem lembrava direito quando apagou.
É fato, que gostava de caminhar, observar a arquitetura das casas, andar pelo velho centro. E observando aquelas casas sentia uma grande tristeza ao compará-las com a ausência de arte que possuíam as construções contemporâneas. Todo aquele contraste era para Mário o paradigma do mundo contemporâneo: ausência de arte, ausência de criação.
Quando estava caminhando sobre o viaduto, parou e olhou para baixo, observando a grande avenida que se estendia ali. Era como um rio tortuoso, não pelo excesso de curvas, mas sim pelo acesso de carros e parafernália tecnológica. Teve a consciência que as pessoas na maioria dos casos estão fechadas. Seja por cabines de carros, por quatro paredes, por um capacete ou simplesmente pelas roupas que vestem.
“Mas tudo isso, não seria por uma questão de segurança?”, pensou. Suspeitava que não. Suspeitava que o enclausuramento em que todos se encontravam, era algo mais. Simples ausência do outro, na verdade, total isolamento, de si para si mesmo, bolhas de concreto que nunca iriam estourar.
Era ele um desses? O simples fato de estar na rua, dava-lhe esperanças. Onde estão os outros caminhantes? Era domingo, na hora do almoço, estavam em casa, apreciando a quente refeição, descongelamento do trabalho alheio? Não sabia, o seu estomago ruía, num grito pequeno, reclamando da noite passada e implorando pelo dia seguinte. Mas Mário sabia jejuar.
Sentiu uma pequena vontade de pular, mas se arrebentar no chão como na canção era pra ele muito clichê, o que justamente rodava na sua cabeça era essa maldita pergunta de como criar o novo, no tempo presente. Parecia que tudo estava posto a mesa, tudo absorvido, todas as cartas estavam dadas, éramos um eterno cover dos inconscientes do passado.
Eis que uma garota passou e ele perguntou:
- Moça, você sabe quantas horas falta para que algo realmente novo e autêntico aconteça?
- Quê? Você tá maluco cara?
- Quase moça. Estou a ponto de pular dessa ponte, se algo realmente novo não acontecer. Uma coisa sabe, como um arpão a perfurar o mundo, mergulhar de cabeça, um tiro na partitura, um buraco de nota em cima da harmonia da vida.
- O que você tá falando? Que monte de merda é essa? Você é muito doido mesmo. Como você chama?
- HAHAHA, eu é que sou maluco né? Você fala tudo isso sobre mim e ainda pergunta meu nome. Meu nome é Mário e o seu?
- Patrícia.
Nesse momento os dois pararam a conversa e se voltaram para observar a avenida lá em baixo e o passar dos carros. Se fotografados por trás dariam a seguinte imagem: o rapaz estava a esquerda da imagem. Os dois estavam pertos, separados por uma distancia de vinte centímetros e ele era dez centímetros mais alto do que ela. O cabelo dela estava preso, deixando cair um rabo de cavalo. No vão entre os dois, subia um enorme poste de concreto na cor cinza. O parapeito do viaduto dava na cintura dele e na barriga dela. Lá no fundo da fotografia, via-se a avenida com seus carros e em cima pegando quase todo plano de fundo, o céu de um azul bem forte e algumas nuvens desmanchadas em aquarela. Na borda da imagem, algumas grandes árvores de copa verde e arredondadas subiam e seguiam margeando a avenida.
Enfim, ela suspirou e disse:
- Como é possível, no superficial, eu olhava pra você e escutava as coisas que estava dizendo e achava tudo um grande absurdo. Mas no fundo, as palavras entravam em mim e dançavam, gritando também, despertando todos os meus sentimentos para algo que eles queriam apreciar.
- Entendo, estamos acostumados com o fluxo linear das coisas e não com algo intricado e esparso. Mas isso já foi quebrado a muito tempo atrás, mas toda essa dispersão foi engolida e deu no que deu, deu nessa avenida com suas cabines de carros a enclausurar as pessoas.
- O que você quer dizer com isso? Que todo o fluxo disperso levou a nossa ruína atual?
- Não, acho que não. Mas penso que na liberdade professada antes, faltou algo. Algo da ortodoxia, da esquerda arcaica. Peneirar a importância coletiva, descartando o sabor opressor.
- Entendo, mas como fazer esse casamento? Parece impossível.
- Pois é, por isso estou parado, por isso te parei e lhe fiz aquela pergunta. Sorte que você parou e alguma coisa aconteceu. Quer almoçar no parque?
- No parque? Então não vai ser um almoço e sim um piquenique. Afinal, no parque não tem como cozinhar.
- Não tem? E se fizéssemos uma fogueira, com qualquer recipiente poderíamos já fazer algo.
- Seríamos presos.
- Pois é, é disso que estou falando, está todo mundo fechado, preso dentro de alguma coisa, mesmo dentro de um parque.
- É, o foda é que romper com as barreiras dessa prisão tem suas consequências.
- Vamos simplesmente caminhar então, que tal? Sua barriga ainda aguenta? A minha sim, sou bom em jejuar.
- Pode ser, hoje finalmente tomei um bom café da manhã.
Começaram a caminhar e terminaram de cruzar o viaduto. Logo em seguida havia uma grande subida. Encararam ela. Não diziam nada, apenas caminhando um ao lado do outro, por alguns momentos seus braços acabavam se roçando e eles sentiam o calor da pele de ambos. Era aquilo a forma de comunicação entre eles, o toque dos braços, o som dos passos dos dois se misturando a medida que o caminho ia se desenvolvendo. A ausência de palavras dava tempo para que eles observassem em volta, toda a arquitetura, a vegetação, os animais, as raras pessoas que ali apareciam, o som que tudo isso produzia.  Nesse observar, quando decidiam olhar no lado oposto enxergavam um ao outro, trocavam olhares e continuavam caminhando, com um bem estar crescente.
Quando terminaram a subida, estavam ofegantes e suados. Ele parou de frente para ela, colocou suas mãos em seus ombros e lhe assoprou o rosto. A brisa daquele sopro dançava com os sentidos dela mais do que as palavras que ele havia proferido quando se conheceram. A resposta da moça foi um largo sorriso, absorvido fraternamente pelo olhar do rapaz.
- E agora?
- Não sei, estou cansada e agora sim com fome.
- Eu na verdade, sempre estive, mas sou bom em jejuar, mas comer agora realmente seria bom. O que comer nesses tempos atuais?
- Melhor ainda é pensar em o que digerir nesses tempos atuais.
- E também há a questão de o que daremos a luz depois. Parir, sempre me parece um processo doloroso.
- Com certeza, toda criação autentica exige dor, mas por tudo que conversamos já, tenho plena certeza que estamos sentido essa dor. A dor da individualização, da bolha, que por mais que entre em contato com outras, nunca se rompe.
- Tenho fome, dê-me de comer.
Olharam novamente uma para o outro e uniram-se num único beijo. Foi necessário morder, ter sangue e dor. A saliva e o simples contato entre as línguas era muito suave para saciar aquela fome. Sabiam que todo aquele processo não se passava somente na boca, esta era a porta de entrada para o acesso entre eles. Para a total ruptura do isolamento.
Quando terminaram, olharam para o céu, com os olhos mareados por lágrimas. Já não havia mais nuvens. Com passar do tempo, pequenos círculos começaram a aparecer na visão de ambos, algo ali se revelava.



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Pele Branca

Preferes o mundo das artes e das mulheres
Eu, prefiro o mundo
em si
cru
O mundo da guerra
o mundo dos homens
o mundo da dor
do jogo
o submundo

É claro que todos esses
bailam com as artes e com as mulheres
Mas isso não importa
o que importa é que tua sedução é paliativa
temporal
a minha, visceral

Penso em cada detalhe
cada toque, cada gesto
Muitas vezes gosto deixar-me dominar
É por isso que falho
falho muito
Mas quando acerto
Os corpos transcendem o tempo e o espaço

já você
sussurra poesias ao pé do ouvido
atiça a pela branca
que diz NÃO
Mas você com tuas palavras poéticas
e com teu pênis ereto diz:
SIMMM SIMM SIMMM

É AI QUE VOCE SE REVELA
NU
HOMEM BRUTAL
QUE COM EXTREMA RAIVA
FAZ DA DOR DO SEXO
O TEU PRAZER
tudo isso pelo abandono paterno

Mas nada disso mais importa
Nós jogadores
perderemos

Quando eu te beijar
quando transar com você

Olharemos
um para outro
e finalmente entenderemos


Um só.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Gigantesco muro branco

Olho pro lado, não há ninguém. Estou lá diante daquele enorme muro ou muralha, tanto faz o conceito dessa merda, o que importa é que estou lá. Parado há mais de meia hora, observando como se estivesse olhando a mais bela musa do universo. Aquilo era branco como sal, naquele horário doía as vistas. Trinta metros de altura? Claro que não, provavelmente bem menos.
Olho pro lado, as pessoas estão se aglutinando a minha volta. São pessoas como eu, pé rapados, todos hipnotizados pelo grande muro branco. Eu também estou olhando novamente, sinto a presença deles crescer. Aumentam numericamente em rápida proporção, são meus irmãos, companheiros. Sinto a presença de todos, mas como dizia meu grande amigo: “quando notamos mais a coisa do que as pessoas, é sinal de que a coisa tem mais importância para nós”.
Minha voz sussurra.
O que acontece com a imensa dificuldade em articular liberdade e disciplina? Barbudos, libertários do cotidiano ao mesmo tempo líquidos, raros de presença e compromisso, ou se não, escassos. Outros, honram com os horários, porém se portam como o grande irmão diante de nós.
Ouço todos os ruídos lá dentro. As máquinas trabalham duro. Pelo tamanho, nota-se que ali não podia ser menor, não mesmo. Dinossauros de ferro, engolem o que vem da terra e vomitam o futuro suor a ser aspirado pelo rico homem. Pobre de nós que olhamos calados do outro lado desse maldito muro. Nossas barrigas roncam, roncam de pobreza de espírito, roncam porque não temos outra opção, roncam porque pedimos esmolas, roncam porque sabemos que estamos lá, mas preferimos olhar para o maldito muro.
Falo normalmente.
Eis que faço um giro de 180. Observo o outro lado da rua, recordo das cenas.
Não foi a primeira vez que senti essa falta, a falta do conflito criativo. O coração tem batido poucas vezes. Por falta de escolha acabava escolhendo as peles macias. Cheiros harmônicos. Femininos. O conflito morava ai. Era desafiar qualquer padrão estabelecido. Qualquer convenção e levar isso ao máximo.
No começo eram coisas pequenas e considerava tais como grandiosas, tudo foi se intensificando, a taxa de pisar na merda só foi crescendo. Como era bom, como era bom, a novidade, estranho pensar que a novidade do passado soa com um sabor melhor do que a atual.
GRITO
Foi falta de um conflito declaradamente aberto com a burguesia.
Do outro lado da rua trata-se de uma praça. Todos estão felizes. Crianças brincam com seus balões multicoloridos. Os pais sentados olham cautelosos elas brincarem. A qualquer momento acionam o botão e a grade de ferro cai sobre os pequenos. Os cachorros fazem seus cocôs em forma de sorvete. Há muito barulho ali do outro lado, sons de suposta felicidade. O que eles têm que não estão hipnotizados pelo grande muro branco? São isentos de tudo isso? Já fui um deles?
Minha voz sussurra novamente.
Os debates são mera reprodução de ficha técnica. A questão israel-palestina está meramente esquecida nas auto-promoções do cotidiano. São totalmente compreensíveis. Qualquer um sente o peso das várias toneladas. O que não se compreende é como eles fazem isso de uma maneira tão banal. O fundamentalismo pode reinar, vem de mãos dadas com o cavalo enxuto, andam sobre o signo da novidade. O que será pior, a verdade nua e crua ou o turbilhão?
Agora já estou no meu ritmo novamente.
O muro continua lá indiferente a todos nós. Meu desejo a transgressão é enorme. Até que um garoto joga o primeiro tomate. Uma pequena mancha vermelha. Genial, realmente genial. Aplaudi ficando praticamente sem fôlego. Outros tomates se seguiram. Mesmo pintando um pouco da paisagem, era pouco diante da totalidade. O muro ainda era indiferente a todos nós.
COMEÇO A GRITAR NOVAMENTE.
As maquinas estão operando a todo vapor. Elas não param. Terão descanso somente quando tudo for pelos ares. Isso jamais acontecerá. As máquinas continuam trabalhando, arrancarão cada gota de suor que restar da classe trabalhadora, e depois esta mesma classe, gastará toda fina verde folha que lhe resta. Burros. Não sentem o que está por vir? Não depositem seu sangue nisso. As máquinas estão a pleno vapor. Ignorantes dinossauros de ferro.
Foda-se a questão do conflito criativo. Eu sei que ele é realmente necessário. Uma hora vou romper com tudo. Morder a primeira pele que me apresentarem, causar aquele extremo desconforto e só assim vou ter o verdadeiro material. Transformarei em ouro. Isso me lembra o tempo das casas de pouca luz. Causarei desconforto e toda ação que vier disso, será alimentadora.
Agora cochicho novamente.
É mesmo difícil pensar no que fazer. A sensação de impotência é muito grande. Sempre imaginei que fosse mais fácil, mas não é. Somos o nosso próprio obstáculo. Queremos sempre representar os desejos alheios, mas os nossos próprios impedem que tudo isso aconteça. As vezes sinto saudade e tenho vontade de voltar para a alcateia, mas não é possível, não duraria nem três segundos. Seis talvez.
Agora sim, tudo está normal.
Uma multidão está na rua. Todos parados. Todos olhando para o grande muro. Eles escutam os mesmos sons que eu? Se sim, isso pode nutrir alguma esperança em mim. Talvez notem que são eles que gritam lá dentro. Gritam por toda exploração que sofrem. Não há risadas no topo, nem tão pouco dó. Há sempre acumulo e mais acumulo, tudo isso se torna investimento. O gado é tragado e cagado e assim sucessivamente.
Meu coração treme, fica na esperança de um coro ecoar. O ressoar de milhares de vozes, poderia de fato fazer aquela estrutura tremer. Seria significativo. Mas continuamos todos parados, o muro branco realmente nos oprime. Estão tensos como eu?
GRITO, GRITO SEM PARAR.
- Oh, reles metais. Chegou o dia do acerto. Ajuste de contas. Pagarão caro, por toda seiva extraída. Não existirá história sobre vocês. No esquecimento se afogarão. Malditas seja, criação nossa, porém a perversão foi evoluindo em vocês mesmas. Que soem trompetes, anunciando destruição, cairão em fogo. Lava voltarão a ser e como nova matéria orgânica, terão realmente alguma utilidade.
O sussurro agora treme.
Estou ficando cansado. É realmente difícil continuar em pé. As reivindicações estão aí em bom som. Se elas fossem executadas, as mudanças seriam tão drásticas que abalariam o sistema. Duvido muito, mas já seria interessante notar o fim de várias coisas. As mulheres com certeza, ganhariam bastante com tudo isso. O corpo feminino grita muito mais que o meu. E mesmo assim o sussurro ainda treme.
Será ele realmente um líder? Não duvido que a intenção seja boa, mas até onde isso não é o macho alfa reprimido. Mesmo nas companheiras o caso se aplica. Falo mais mal de nós do que deles. Mas o que dizer deles, já sabemos que estralam o chicote e a língua goza de sabor perante a isso. Vejo-os sempre como porcos de cartolas.
A dita normalidade começa a retornar.
A coisa está ficando apertada. Uma certa pressão começa a ser feita contra o muro. Mesmo que involuntária, aquilo ali está acontecendo. As maquinas estão ficando preocupadas, sei que elas estão ligadas com as cabeças. Mas afinal o que está sendo construindo ali? Para os desinformados, trata-se da fábrica dos sonhos, em que João, assim como eu você, dificilmente colocará os pés no tapete dos desejos.
Mas não são essas nossas verdadeiras aspirações. Eles tentam dizer que sim, mas jamais vamos acreditar. Jamais. Estamos ali como cachorros moscas de açougue. Aguardando simplesmente o momento certo para o bote. Será fatal. Não teremos dó. Cairão como gigantescos prédios implodidos.
Eis que as escrituras são grafadas no muro. Bem ditos sejam aqueles que fizeram isso. Como já disse, meus irmãos.
Frase 1: Não seremos mais enganados, por qualquer propaganda televisiva ou simples manipulação na internet.
Frase 2: Sabemos da desigualdade econômica, sabemos o nome disso: LUTA DE CLASSES.
Frase 3: estamos resolvendo nossas diferenças. Toda ideologia progressista agora será utilizada como um instrumento a nosso favor.
Frase 4: sabemos também dos diferentes eixos emancipatórios. Não insistam. Não haverá racismo, machismo, homofobia, degradação ao meio ambiente. O grito dos excluídos fará parte do nosso coro.

E as frases continuaram. O muro agora estava colorido, de preto. Com toda pressão e ataques ferrenhos a sua estrutura, o gigante branco começou a tremer. Eu, já estava em prantos e ao mesmo tempo urrava junto com todos outros. Sentia que algo a mais estava para se revelar. Para além do mero grito das indiferentes máquinas. Meus irmãos tinham o mesmo pressentimento que eu?
Um último sussurro.
Por quantas vezes sou tentado a me jogar no abismo? Entrar na dita normalidade do “revolucionário”? Ser um dito quadro, obter o sexo que vem com isso e ter os méritos que se pode gozar com a disciplina e criatividade que cabem nesse espaço? Poderia. Que as coisas fiquem resolvidas. Sei que eles são tão bons quanto eu e tão ruins também. Tomara que estejam certos. Eles e todos outros.

Os blocos começam a cair. Enfim os blocos começam a cair. Pouco a pouco as maquinas são reveladas assustadas. Quem gritará por elas, quem as ajudará? Nós que servimos de alimento, com certeza não. A medida em que ele cai, os sorrisos florescem. Agora começamos a ter certeza. Não era o muro que escondia as maquinas de nossa exploração. Nem tão pouco os burgueses que nem ali se escondiam. Sim, é obvio que o muro dizia respeito entre os burgueses e nós. Mas esse muro estava mais do nosso lado, calcado em nossas dificuldades. Quando a última criança com seu punho raquítico derrubou o último tijolo, entendemos que era o muro que nos separava de todas as nossas aspirações e sonhos. Entendemos que transpor é mera vontade materializada, fruto do suor que escorre lado a lado.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Acordei

A janela estava aberta e o sol já batia forte, fazendo com que uma intensa claridade invadisse o quarto. Mas meu despertar não foi devido a luz. Foi devido a uma sensação, que a princípio me pareceu estranha, mas depois comecei a compreender do que se tratava.

Um sentimento que tenho certeza que mexeu com todos os meus sentidos. É difícil dizer qual deles foi o primeiro a ser alertado. Chuto que foi a visão. A mesma claridade que não me fez despertar, ao mesmo tempo fazia parte de tudo aquilo. Obviamente era um sentimento acionado pela minha memória e aquela luz ali no quarto, naquele exato momento, remetia a uma questão especifica.
Era a luz de determinados despertares, os mesmos que sempre aconteciam do lado de alguém, do lado de uma mulher. Que surgiam sempre depois de uma noite de bebedeira e que o próximo despertar só surgia quando a companhia também era outra. Aquela luz batia sobre a pele dos dois corpos, em mim causava a sensação de ser um calor matinal, extremamente equilibrado, nem quente demais quando estava com as cobertas, nem frio de mais quando estava sem elas. Um mimo solar, apesar de considerar engraçada tal expressão, por muitas vezes foi o que pensei.
Mas como já disse, todos os sentidos eram provocados quando acontecia esse sentimento. Depois fico pensando no olfato. Que cheiro era aquele? Não era o cheiro da mulher que estava ao meu lado, muito menos o meu. Os nossos cheiros, o meu e o dela, só faziam parte da composição, só faziam parte da totalidade. Ouso dizer que era o cheiro do próprio sentimento e que esse cheiro tinha relação com tudo mais, com todos os outros sentidos.
Parecia o cheiro do alívio, mesclado com glória e perdão. Sim, eram esses exatamente os aromas. Com isso já podemos pular para o paladar, esses mesmos aromas eram também os sabores: alívio misturado com glória e perdão. Juro que por alguns minutos minha língua sentia o gosto deles.
A música. A música era produzida por esses pequenos passarinhos com piado fino e constante. Esse era o som em primeiro plano. Num plano secundário estava o som dos automóveis. Passavam esporadicamente e raramente algum deles se atrevia a fazer um barulho mais alto. Passos de pessoas eram uma exceção naquela harmonia.
Por fim, voltando ao tato, para além do gostoso mimo do sol, nunca os lençóis ficavam tão agradáveis como durante aquele sentimento, a pele delas sempre parecia mais convidativa, mas não por mero desejo carnal, sempre eram convites de afeto.
Tudo isso em poucos minutos. Porém estava sozinho. Por que justamente hoje a recordação de tal sentimento? Talvez devido a bebedeira de ontem. Mas nem foi uma grande bebedeira assim, a máquina está cada vez mais enferrujando, incluindo o tanque. Vai saber, o que importa é que lembrar disso, fez com que lembrasse de todas, fez com que olhasse no espelho, a cara nem é das piores, mas não posso dizer o mesmo da vida.
Não que durante esses despertares estive num momento de fama e glória, mas pensando agora, ao menos me sentia na ativa. Hoje é como se tudo estivesse organizado e aqui estou eu todo organizadinho num mar de bosta. Talvez o caos seja essencial para a criação, acho que alguém já falou algo assim, o pior é que não tenho a mínima ideia, nem que eu quisesse, de como retomar esse caos na minha vida.
Primeiro, que não somente elas, mas todo o ciclo de relação delas, vira a cara para mim. E são eles justamente a rapaziada do rock n roll, da agitação, da vida caótica. Segundo que eu também já não tenho mais o mínimo de paciência para lidar com esse tipo de pessoa, aliás, acho que já não tenho paciência para lidar com tipo nenhum. Olha eu já parecendo o velho beberrão da máquina de escrever de novo.

Levantei da cama, vesti a cueca e fui no banheiro fazer o de sempre. Liguei o chuveiro e enfiando a cabeça lá embaixo durante um bom tempo, tentei esquecer a merda desse sentimento e tudo que ele me trouxe. É sempre assim, alguém acordando, indo pro banheiro e aí tudo começa, no fim tudo termina na sala da casa. A máquina realmente está enferrujando.
Justamente por isso pensei que hoje não beberia cerveja, doce ilusão. Foi sair do banho, já fui direto para a geladeira e apanhei uma long neck. De repente, mais um flash: minha mãe gritando:
- Miguel, sai da frente da geladeira, você acabou de sair do banho quente, vai entortar.
Eu sempre saía imitado uma cara monstruosa pra ela, como se realmente tivesse ficado o rosto deformado, num primeiro momento a velha sorria, num segundo ficava puta da vida e me dava umas porradas de leve.

É realmente difícil lidar com os tempos verbais hoje em dia. Mas o que importa, é que terminado minha cerveja, decidi dar um boa caminhada sem rumo pela cidade. Não tinha nenhum bico pra fazer mesmo e também não estava afim de procurar nenhum, a grana ainda ia durar por algum tempo. Coloquei minha roupa e pé na estrada.
Descendo uma rua qualquer, vi que num jardim de casa, duas menininhas descalças brincavam correndo uma atrás da outra, provavelmente pique e pega. Nova recordação, pés descalços na grama. A quanto tempo não fazia isso? Essa recordação também tinha cheiro, tato, música, obviamente visão, só não sei se paladar, acho que foram poucas vezes que meti um tufo de grama na boca.
Aquilo ali entrava como espinhos suaves em nossos pés, se é que isso é possível, era como se em cima houvesse uma camada macia e em baixo algo bem encrespado e duro. O cheiro de grama todo mundo já conhece, mas quero dizer a vocês que nada como o cheiro de grama cortada. Sempre sonhei em fazer um perfume com esse aroma, parecido com aquele menino do livro.
Pisar na grama, ouvir aquele chiado dela sendo esmagada aos poucos e depois os sons dela se reconstituindo das suas pegadas. Quando retomei a consciência, já estava descalço simplesmente caminhando em círculos na frente das meninas. Elas pareciam que iam começar a chorar e provavelmente os berros seriam fortes, clamando por seus pais. Dei o fora dali.
Será tudo isso mera descrição memorialista? A máquina não só está enferrujando como também caindo aos pedaços.

Decidi então passar numa livraria. Adoro comprar livros de bolso. É, realmente é. Ficar girando aquelas prateleiras e de repente o danado aparece. É claro que o fator principal é por eles serem baratos, como free lancer não dá pra ficar comprando sempre aqueles calhamaços cheios de ilustrações. Fato é, que na livraria encontrei uma das mulheres do sentimento, aquele do despertar, que recordei quando acordei.
Ela estava parada no meio da loja, segurava na mão um livrinho de bolso também. Acho que também fica bom aqui. Vestia uma saia vermelha, dessas que parecem estar engomadas, uma blusa justa decotada azul e uma jaqueta de pseudo couro amarelo. O resto da descrição termino depois. Aliás, imaginem que ela também tem cabelo curto e o resto complementem como quiserem.
A maioria das pessoas que estavam ali na loja, olhavam espantados para ela. Logo percebi o porquê. Em voz alta estava lendo o livrinho, não dava para identificar que livro era, mas a questão é que não parecia estar fazendo muito sentido para os presentes ali.
- E ele mordeu fortemente o clitóris dela. Logo toda a cama já estava ensanguentada. Ela ficou horrorizada com aquela atitude, não entendia como que uma pessoa supostamente tão carinhosa como ele, pudera cometer uma atitude como aquela. Parava olhava em volta, parecia buscar o olhar de cada pessoa e depois continuava.
- Sim! Sim! Sim! Deu as duas últimas garfadas no enorme pedaço de bolo de cenoura. Aquele pedaço poderia ser considerado um bolo em si, mas ele sempre teve ciência de que se tratava de um pedaço. Sabia também que era o último bolo de cenoura que comia feito por sua mãe. Durante a primeira garfada a velha acabara de ter um infarto e caiu no chão da cozinha na frente do rapaz. Por causa disso, ele hesitou em dar a segunda garfada, mas sabia que aquilo era necessário e então fez.
Respirou profundamente, lembram-se da aparência das roupas dela, as cores, o que vocês imaginaram? Respirou profundamente e fechou o livrinho e começou a falar mais uma vez:
- Vocês podem estar achando tudo isso muito estranho, uma leitura desconexa, e que vai do horrendo ao ridículo. E justamente devem variar entre tais sentimentos, não sabem se ficam horrorizados ou se dão gargalhadas por acharem tudo isso muito ridículo. Não estão acostumados com algo que rompa com a zona de conforto de vocês. Mesmo numa livraria, suposto lugar de intelectualidade, tudo tem que correr como manda a regra.
Riem, mas nem se quer notam a própria prisão. Enquanto falo, conseguem imaginar algo bem colorido, que de fato soe como absurdo? E qual foi a última vez que um de vocês praticaram o absurdo? Isso é arte meus queridos, a prática do absurdo. Somente ele pode significar liberdade.
Mas compreendo vocês, nem sempre sou assim, também tenho medo, muito medo. Afinal desde criança tomamos pauladas, e a mordida seja do sexo ou do bolo soa pior do que as surras oprimindo as cambalhotas.

Licença poética. Afinal é a personagem que está falando mesmo. O que fazer com o soar ridículo? Tudo já está ficando muito forçado, a máquina está prestes a explodir.

Abriu os olhos, por um segundo ela desejou aplausos, mas sabia que isso não ia acontecer. Eu fui o único que aplaudi, talvez pela consideração que ainda tinha por ela, não por toda aquela baboseira que tinha acabado de ouvir. Minhas palmas soavam secas e ecoavam pela loja, dessa vez era eu o centro das atenções. Percebendo aquilo, dei o fora dali.
- Miguel! Miguel! Espera!
Quando já estava na rua, olhei para trás e percebi que ela corria atrás de mim e gritando. Parei e esperei.
- Ei carinha, diz ai, o que você achou da minha performance?
- Ah foi até legal, pena que parece que o pessoal não gostou.
- Do jeito que que você falou, parece que também não gostou.
- Como assim? Você não viu que fui o único que aplaudiu?
De repente, mais uma vez de repente, tomei consciência que ela estava ali parada na minha frente. E que se tratava também de um corpo parado na minha frente. Logo uma explosão de flashes começou a surgir na minha cabeça. Cenas de sexo com ela, de risadas, de brigas, tudo isso muito banal. Mas o fato é que fiquei ao mesmo tempo excitado e desesperado. Excitado pelas recordações do sexo, desesperado por ter todos os sentidos ativados pelas boas recordações dos momentos de risadas e desesperado por saber que aquilo era impossível de ser recuperado. Qual foi o dia em que tive o sentimento de hoje de manhã com ela?
- Preciso ir.
- Como assim?
- Tchau.
Saí dali, andando com passo apressado, ela me dizendo para esperar, mas nem dei ouvidos e continuei.

Preciso terminar isso aqui. Já estou me alongando muito. É assim que as coisas funcionam hoje em dia, tudo compacto e rápido para ser degustado. Filmes, literatura e o caralho a quatro. Rápido e compacto. Mas não queria terminar em casa, com uma ótima cena de tragédia. Provavelmente irão reclamar que tudo isso já foi escrito.

Eis que olho por uma dessas janelas quadriculadas. Mas tudo está preto, somente por um dos quadradinhos é possível enxergar. Várias pessoas parecem caminhar ali dentro, como se estivessem do outro lado da rua. Não, vejo elas de cima para baixo, são pequenas, e sei também que se trata da janela de uma loja. Afasto, tento olhar de novo, agora aquele quadrinho também ficou escuro.





sexta-feira, 4 de julho de 2014

#vai sem título mesmo#

A única coisa que posso fazer é escrever. um mero esquecimento, um simples esquecimento e sobrou isso. Um erro na mão e a fonte sobe automaticamente.. automaticamente, que palavra robusta, difícil. ahhhhhhhhh
tenho a certeza que continuo errando noite a após noite. É olhar em volta e gritar para um velho gagá:
- ELES ESTÃO TODOS PERDIDOS!! ESSA JUVENTUDE ESTÁ TODO PERDIDA. OLHA SÓ. TÁ TODO MUNDO CASANDO, TODO MUNDO CONVERSA ALTO DEMAIS, TANTO É QUE GRITO PRA VOCÊ VELHINHO.
Ele de cabeça baixa, me responde:
- Vira e meche eles caem na monogamia.
Meu Deus! nessa hora o desespero tomou  conta de mim, bati a mão na parede alaranjada, dei um chute na porta e saí correndo do bar, sem pagar mesmo, saí a la escocesa, não é assim que dizem?
ainda correndo, duas esquinas pra baixo, tropecei num grande cachorro amarelo, ele tinha o rabo cortado, mas em compensação o que perdeu atrás ganhou no tamanho da língua.
rolei uns bons metros na rua, a roupa ficou cheio de terra e meu amigo cachorro amarelão não esqueceu da minha figura. veio fuçando em mim, deu com a língua em minha nuca e falou baixinho em minha orelha:
De ti
só quero troça
pois toda essa joça
jaz
na podridão

Dei um grande salto e me pus de pé. Ora bolas, afinal de contas o que era aquilo? Aquele grande cachorro amarelo estava zombando, em plena três e quarenta e sete da manhã?
- Escute aqui meu amigo, esses seus versinhos não surtem efeito. Prefiro muito mais um axé, um pagodão dos bons, tá me entendo? Já ouviu aquele da loirinha que escorrega no quiabo?
Amarelão bateu asas correndo pela rua. Foi a última vez que o vi. Bem te vi, bem te vi, tocava as badaladas em minha cabeça, agora que só caminhava, tinha certeza que estava no caminho errado. Mas por onde andar? Em todos os lugares bacanas eu era considerado um estranho, era sentar e ser ignorado ou logo começava a receber os olhares fuzilantes.
Lá pelas tantas não sei se foi o vento que me levou ou se toda rua transformou-se numa grande esteira produtiva, estava de frente daquele casa roxa. Lembrei de um poema de um velho mortificado.

Naquela casa, as paredes são tortas
lilás escorre das veias
entre as portas
passam as sombras de meu coração

Poxa vida, que velho safado pensei. Levou mesmo uma vida bacana, melhor talvez do que a vida do velho gagá, meu amigo de bar que só conversava de cabeça baixa comigo. O desgraçado deve ter acertado o caminho, ao menos uma mulher bonitona que vai morrendo com o tempo, como será que eles se olham lá pelos oitenta anos? Fartura tinha na geladeira dele, disso eu sei, roubei até uma fatia de queijo fresco.
Mas enfim, não importa, o que importa é que estava lá. de frente para a casa lilás, roxa. Bati forte na porta, um belo dum soco e berrava a plenos pulmões, aquilo sim o ministério da saúde deveria recomendar
- DEIXE-ME ENTRAR, TENHO SEDE, MUITA SEDE. POSSO ATÉ MATAR CASO NÃO BEBA UM BOM GOLE D’ÁGUA.


Nada. o vento soprava lá no fundo rindo de mim, já estava me irritando com aquele danado, toda vez era assim quando me jogavam na indiferença. Ai que negócio difícil. muito difícil
Desta vez, resolvi dar uns pontapés na porta, doeu muito também, errei a pontaria e acertei o mindinho, mas que se dane.
- ESCUTA AQUI, JÁ ME ROUBARAM TUDO ATÉ AS EXPRESSÕES MAIS SOFRIDAS. DEIXE-ME ENTRA POR FAVOR!!
A porta desapareceu, restou o buraco do portal revelando a escuridão da casa. Pura magia hahaha entrei sem pestanejar. Pois bem meus queridos, podem ascender a luz. Bati umas boas palmas e tudo se clareou em minha vida, respirei aliviado pela primeira vez nessa história.
O mordomo se aconchegou perto de mim em sua bela cadeira de rodas dourada.
- Afinal, o que o senhor deseja?
- Bem, primeiro me veja, duas xícaras de leite, quero pão mandi, muitos pães, passem neles um boa manteiga, mas anota aí, tem que ser manteiga, não me venha com margarina. Sabe aquela geleia de amora? Passa no alface, enrola e prende tudo com palito de dente.
Ele rodou com suas mãos delicadas aquelas belas rodas douradas e com certeza foi efetivar meu pedido.
- MARGARIDA, MARGARIDA MINHA FILHA, VEM PRA CÁ, VEM.
Margarida era flor perigosa, só de ver dava medo, de vestido colado derrubava mil, de palavra na boca, ganhava a nação.

aiai

- MEU SENHOR, ESCUTA BEM O QUE TO TE DIZENDO.. OLHA PRA ESSA FESTA, TÁ TUDO PERDIDO.
Ele batia nas minhas costas, entendia bem todo aquele sentimento, talvez tivesse errado todas as noites da sua vida também.
- Meu filho escuta bem, os gênios têm a chave do tempo. Sei bem disso, meu erro foi o ano que decidi voltar. Fui ambicioso de mais, estava com quarenta anos e voltei pra quando tinha dez anos de idade. Tava na praça, a meninada toda brincando de safadeza, foi a primeira garotinha que beijei. Lembrava de tudo, tava num corpo de dez e com uma mente de quarenta, mas sabia das artes do amor. Dei um beijo nela que a tal ficou doida. Era crescidinha, maior que todas outras, não deu duas semanas já estávamos na coisa. Perdi então minha virgindade com dez anos, antes foi apenas com dezoito. Ha, mas viver a infância tudo de novo, meu grande erro, meus pais naquela época, tão crianças quanto. Um dia não aguentei e disse umas boas pra eles, usei da grande filosofia, meu pai chorou de soluçar. Não aguentei, foi foda, minha vida toda ficou muito mais fudida.
Abracei aquele velho gagá e choramos no bar. Finalmente silencio naquela birosca, todos nos olhando, berramos eu e o velho, berramos fundo, liberdade:
- EIS AQUI TODOS VOCÊS. APRESENTAMOS MARGARIDA, A MAIS BELA E FORMOSA DÚVIDA NA VIDA. BESTAS ATROSES, SABEM QUE ESTÃO CORRENDO PRA TRÁS. BAIXEM TODAS AS CABEÇAS QUE ESSE VELHO MEU AMIGO É MELHOR QUE TODOS. UM GÊNIO, UM SANTO GÊNIO, COMETEU APENAS UM ERRO, QUIS BEBER TODA A FONTE DE UMA VEZ SÓ. MAS SABE MAIS, MUITO MAIS, PEQUENOS INTELECTUAIS DE MERDA. AGORA, SÓ RESTA UMA ATITUDE A TOMAR, COMECEM A URRAR BEM ALTO, QUE O LOBO FAMINTO CONSUMA CADA CENTÍMETRO PEQUENO DA PODRE GOTA QUE É A VIDA DE VOCÊS.
eram gargalhadas, gargalhadas.. gargalhadas.. eu e o velho agora éramos dois cachorros, amarelo e roxo, morávamos na casa do teto do céu, uivando e fazendo cair estrelas.


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Pedaço empoeirado

Triste cena aquela
onde caía cada pedaço
e a dor que crescia em mim
soava como tristes e agudos acordes

Triste cena aquela
espetáculo da miséria
da esmola esfarrapada
              do suplício humano
de cana ardendo nas veias

a malandragem desgastada
e o pequeno a esperar
              com minhas lágrimas ausentes

peito bobo o meu que pensa nisso
feito bobo mesmo
Eu ou ele?

De sábio ali
somente a criança
com suas pequenas mãozinhas
a recolher os tais pedaços

meus pedaços

Maldito!

disse
ao céu rosado
este mesmo céu
que turva menos minha visão

MINHA VISÃO

do que o último e recolhido
pedaço

empoeirado. 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Parem a Palavra!

E se,
os nossos corpos deixassem de percorrer
os diversos caminhos
na frenesi da vida cotidiana
embalados ao som de máquina
e passassem a esquecer da velocidade
substituindo cada quilometro rodado
por palavras poéticas.
Talvez,
os nossos pés calejados
passariam a sentir em suas veias
rimas ao invés de dor.
Deixaríamos o metro, o segundo, o  passado e o presente
se perderem
Quem explodiria no caminho
seria o som
O som dos sentimentos trazidos
pela ginga dos versos encantados
Não seríamos
mais velhos ou jovens
Não ousaríamos dizer
ontem ou amanhã
Somente parados, estagnados
perdidos na curva da linha
do tempo e espaço
acharíamos o que realmente importa
Que a visão ganhasse
o seu único propósito:
A luz capturada no olhar
dizendo

Amor.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Couro no asfalto

Murilim corre corre que não para. A rua é asfaltada, mas é tanta terra vinda das outras que não são, que a rua em que Murilim corre, parece mais estrada de chão. Passa por tudo sem se aperceber, os motoristas irados buzinam para ele vindo na contramão. O povo do comércio olha admirado, porque aquele negrinho, baixinho corre tanto, parecendo que nem sabe para onde vai.
Para na quitanda do seu Chico, aquela da parede amarela tinta descascada, tem de tudo por lá, só não tem luz, eita lugarzinho escuro.
- Seu Chico?
- Que foi menino?
- Minha mãe pediu pra eu pegar um saco de macarrão, uma lata de extrato de tomate e um suco Maguari. Aí ela falou que é pra anotar tudo no cadernin.
- Mas de novo? Escuta aqui Murilim, fala lá pra sua mãe que essa é a última vez que eu vou fazer fiado pro cêis, depois não quero nem saber.
- Tá bom seu Chico, mas vê esses trem aí logo que eu não tenho nada com isso não. Vamo que se eu não andar de pressa, ela ranca meu coro.
- Ê muleque, fala assim de novo, que eu só não te vendo nada, que ainda te dou uma peia que vai fartar couro nesse tiquinho de gente aí seu.
Pegou as coisas e jogou pra cima do muleque, ele ligeiro que só, agarrou tudo no ar e aí correria começou de novo. Mas mal saiu levantando poeira já topou com dona Carolina, bola grande redonda de senhora. Usava um vestido laranja com umas bananas estampadas, como que ele não viu aquilo ali?
Murilim caiu sentado no asfalto, o choro principiou primeiro que a dor.
- HUMMMMNNNNNNN BUUUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ.
Macarrão para um lado, extrato de tomate para o outro, suco esparramado e criança empoeirada berrando no meio e dona Carolina estava assustada, com uns olhões arregalados, morrendo de vergonha dos outros na rua, sem saber o que fazer naquela situação.
- Ô menino, para com isso. Agorinha vai começar a chegar gente aqui em volta e eu não quero isso. Para de chorar que eu te dou um doce.
E cachorro rejeita linguiça? Num pulo o menino já estava de pé, a vermelhidão dos olhos foi substituída por um brilho inexplicável, parecia que ele já sentia o sabor do doce pelos próprios olhos. A língua do moleque ficou invejosa, perdera sua função.
- E que doce a senhora vai me dar, dona Caroca?
- Toma esse trocado aqui, vai ali de novo na quitanda e compra um pé de moleque pra você. E não me chama de Caroca não, se não, no lugar do doce vou é te dar um safanão.
Nem o sol piscou e Murilim já estava dentro da quitanda.
- Seu Chico! seu Chico! seu Chico!
- Ô minha nossa senhora, que que foi menino desinsofrido?
- Vê um pé de moleque pra mim e dos mais gostosos que tiver.
Jogou então os trocados no balcão e ficou esperando que nem gato quando espia passarinho de baixo da árvore.
- Ara menino e onde foi que você arrumou esse dinheiro pra comprar doce, até agorinha acabei de fazer fiado pro cê e pra sua mãe.
- Uai seu Chico, o senhor gosta é de dinheiro ou gosta é de conversar? Vê logo esse doce pra mim, que minha barriga já tá é roncando de fome. Foi dona Caroca que me deu.
- Ô menino desaforado. Êta veia besta, fica dando dinheiro pra esse muleque, depois que acostuma quero ver o que ela vai fazer (falou essa última frase baixinho, que era para o menino não ir fofocar para a senhora).
Pegou o doce e jogou no moleque, dessa vez pegou em cheio na moleira dele, os reflexos não deram, talvez a felicidade fosse tamanha que o deixou meio lerdo.
- Aiai seu Chico, faz isso não que dói muito.
- Anda menino, vai embora daqui que já não guento mais olhar pra essa cara feia sua.
Catou o doce e saiu em disparada de novo. Era poeira, lambreca na boca, sorriso nos dentes, tudo misturado na correria de volta para casa. Chegou em casa, o doce já tinha acabado. A casa sem reboco, só chapiscada, só tinha uma entrada que era da cozinha. A água no fogãozinho esmaltado branco de quatro bocas, soltava fumaça que soltava, a mãe ali na beira, com as mãos escoradas nas cadeiras esperando o menino chegar.
Murilim passou vazado direto, chegou correndo, chinelo para o ar e pulo certeiro no sofá, era hora de desenho na TV que ela gostava de dar gaitada.
- Murilo Candido de Souza, cadê o macarrão e o extrato que eu pedi pra você comprar?
Menino preto ficou branco, era gelo só dentro da barriga, tudo revirava ali por dentro. Lembrou que quando foi comprar o doce, deixou tudo jogado na rua e esqueceu de pegar de volta. O jeito era sair correndo para buscar, mas e se não estivesse mais lá. E se algum mequetrefe na rua tivesse achado e nessas horas já estava com a pança cheia? Ô vida triste, o vida danada pensou o menino, alegria de pobre, menino, preto dura do tamanho que Murilim era.
Ele chegou arrastando pé na cozinha, de cabeça baixa e com os braços e as mãos cruzadas nas costas, nem sabia o que iria ser, só sabia que o coro ia arder.
- Mãe, eu me esqueci das coisas, a senhora perdoa eu?
- COMO QUE ESQUECEU, MENINO DESGRAÇADO! EU TE MANDEI LÁ SÓ PRA COMPRAR ESSES TREM. AGORA SEU PAI VAI CHEGAR E O ALMOÇO NÃO VAI TA PRONTO. ELE VAI ME TORRAR A PACIÊNCIA, VOU FALAR QUE A CULPA FOI SUA.
- Não mãe, não mãe, conta pro pai não que ele vai me matar de tanto bater!
- Mas é isso que você merece mesmo seu desgramento.
- Mãe, eu volto lá rapidim e pego as coisas e volto mais depressa ainda.
- Então vai, some daqui, se não, esquento seu lombo.
Agora, tudo era só poeira, não existia nem mais menino, chegando ao local procurou para todo lado as coisas e não achou nada. Era tristeza só, se voltasse pra casa tava lascado, se demorasse muito tava lascado, se pedisse fiado na quitanda tava lascado, queria cavar um buraco e de lá não sair nunca mais.
Murilim sentado na calçada chorando sufocado com a cabeça entre as pernas, nisso passou um mendigo mais manguaçado do que gambá, tentando equilibrar na sua corda bamba imaginária.
- Ei menino, tá chorando por causa de quê?
Sem resposta.
- O fi duma rapariga, que que foi?
Sem resposta.

Não andou nem mais duas quadras, quis beber e viu que sua cachaça tinha acabado. Parou, olhou para as pessoas que passavam apressadas por ele na calçada, lembrou que tinha fome.