Quando João Paulo olhou
no celular batiam exatamente sete e trinta e cinco da manhã, o ônibus passava
por uma rua qualquer da periferia da cidade. João guardou o celular no bolso,
apoiou o cotovelo na janela do ônibus e começou a cochilar. Toda vez que o veículo
caía em um buraco, o rapaz era arremessado por milésimos de segundos ao ar e
retornava ao seu acento, nesses momentos acordava rapidamente e logo voltava a
cochilar.
Trabalhava de pedreiro
numa obra, era uma pena que o ônibus rodasse tanto antes de chegar ao seu
destino e ao mesmo tempo era uma benção, pois ele aproveitava pra dormir um
pouco mais. A carcaça de lata ia praticamente vazia, sempre os mesmos
passageiros e o cobrador com o motorista fazendo suas piadas malucas. João já
conhecia bem todos ali, apesar de nunca ter conversado com eles.
Ficava sempre na sua,
nunca puxava assunto, sentava em um lado do ônibus que com o tempo aprendeu que
era o que menos batia sol durante todo o trajeto. Não gostava muito do sol.
Quando caminhava, buscava sempre andar pela sombra. Um verdadeiro vampiro, se
pudesse, viveria somente à noite. Um vampiro forçado a se expor a luz do dia.
Tudo isso só para conseguir o seu bendito sanguinho, o seu alimento, o salário
no fim do mês.
De repente começou a
sentir um cheiro azedo, nem todos os buracos do mundo que o ônibus poderia cair
faria o acordar daquele jeito. Pensou: “que porra é essa?”. Acordando e olhando
em volta, viu que perto da porta de saída mais a frente, num banco do lado
direito, o chão estava coberto por um líquido pastoso e marrom. Quando pensou
em descobrir a origem daquilo visualizou no banco que a mulher ainda estava
vomitando, mas já estava no estágio final. Saía da boca dela agora apenas um
fio transparente que João nem conseguia imaginar no que consistia aquilo. Em
outro banco, sentada atrás, uma senhora tentava acalmá-la.
- Calma minha filha, já
tá passando, tá. Agorinha a gente desce.
- Eu falei pro
motorista que eu tava passando mal e ele não quis parar. Eu não queria ter
feito isso. – Seus olhos estavam vermelhos e lacrimejavam, provavelmente estava
com muita vergonha.
Os poucos passageiros
que estavam ali perto começaram todos a ir para o fundo do ônibus. Muitos
queriam descer naquele momento, puxaram imediatamente a cordinha como se
estivessem sufocando. João foi o único que continuou parado no seu lugar, ainda
tentando esquecer aquele cheiro e voltar para o seu cochilo. Olhou para o
cobrador e percebeu que o cara se sensibilizava com todo o drama daquela
mulher, mas que de certa maneira estava impossibilitado de fazer qualquer
coisa, ao menos deveria ser o que o cobrador pensava naquele momento.
João então abriu um
pouco da sua janela. Não costumava deixa-la fechada, mas aquele dia estava um
pouco mais frio do que os outros. Não conseguiu voltar a cochilar, acabou
observando aquela cena mais uma vez. A poça de vômito agora estava um pouco
menos densa, um líquido de cor marrom claro já tinha se espalhado mais pelo
chão do veículo e no centro da poça observou pequenos pedaços, provavelmente de
carne que a mulher tinha comido.
“Será que ela precisa
de ajuda? Acho que não, a senhora ali já tá ajudando ela, logo logo elas devem
descer. Mas será que essa merda toda vai ficar aqui até quando? E se alguém
escorregar em tudo isso aí? A coisa vai ficar pior ainda, provavelmente vamos
ter vômito misturado a sangue”, continuava João, refletindo sobre o que estava
acontecendo.
O ônibus parou em dois
pontos, até que no terceiro as duas mulheres desceram, ele observou que a do
vômito estava grávida. “Humn, então não foi por causa da carne picadinha
estragada”, agora tudo fazia sentido em sua cabeça. Mais dois pontos pra frente
era sua hora de descer.
Na porta da construção
percebeu que mais uma vez foi o primeiro a chegar, gostava de fazer isso,
geralmente escorava em um canto qualquer e ficava cochilando, quando os seus
colegas barulhentos chegavam, dava um salto e começava a pegar no batente.
Sempre perguntava para o mestre de obras o que tinha que ser feito naquele dia e
logo em seguida já metia a mão na massa. Não conversava muito no serviço
também, só o básico para que as coisas do trabalho funcionassem. Seus colegas
faziam piadas e xingavam uns aos outros o dia inteiro, quando conversavam sobre
alguma coisa sempre era sobre mulheres, até o futebol já estava ficando de
lado, talvez os times já não estivessem mandando tão bem assim. Havia raras
exceções ali, com esses, João até trocava uma palavra ou outra, geralmente eram
os mais velhos, já tinham filhos, gostavam também de falar sobre mulheres, mas
pareciam estar muito menos no cio do que os outros.
- Que merda aquela
coisa toda com o vômito – disse João antes de achar algum lugar para escorar.
Toda essa coisa, fez
com que repentinamente, percebesse que esquecera a sua marmita de almoço, agora
estava com o estômago embrulhado e no futuro seria adicionada a isso sua fome.
“Porra! Vou ter que
comer naquele restaurantizinho.” – Meteu a mão no bolso para procurar algum
dinheiro e percebeu que estava zerado. Esqueceu-se do seu cochilo que
tradicionalmente tirava na obra e ficou andando de um lado para o outro, pensando
no que fazer e ainda sentindo um pouco de enjoo.
- Vou pedir dinheiro
para algum dos caras aqui, é isso. Porra, mas eles são chatos pra caramba, vão
ficar me enchendo o saco o dia inteiro. Vou pedir pra um dos mais velhos, com
certeza é melhor assim. Mas merda, os caras são tão duros quanto eu. Pelo visto,
só me resta o mestre de obras, mas se pedir grana pra aquele babaca, isso vai
fazer com que ele se sinta superior a mim, eu é que não vou dar mole pra aquele
cara.
Enquanto João pensava
sobre essas questões, o resto do pessoal começou a chegar à obra. Todos o
cumprimentavam e ele nem respondia, ficava parado e continuava a refletir.
Ninguém gostava muito dele mesmo, então para eles aquilo não fazia muita
diferença. O único que gostava um pouco mais era o mestre de obras, por João
não conversar muito, o trabalho que fazia geralmente ficava muito bom.
O rapaz se achava mais
inteligente do que todos ali. Cursou somente até o ensino médio, a maioria dos
seus colegas também, alguns nem chegaram a isso. Mas João, talvez tenha tido
uma infância diferente dos demais. Muitos deles nunca conheceram o pai ou se
conheceram já tinham esquecido a figura paterna. João lembrava-se muito bem do
pai, queria nunca ter o conhecido, mas a memória do velho não saía da sua
cabeça.
Infelizmente uma
clássica figura da nossa sociedade, o velho era alcoólatra e batia tanto na
esposa como no filho. João era filho único, então sua mãe era a única com quem
dividia as surras. Apanhavam geralmente porque discordavam de pequenas questões
do pai, quando este estava embriagado e discordância o desgraçado não admitia. Às
vezes, apanhavam sem nenhum motivo mesmo, provavelmente alguma coisa havia o
irritado fora de casa e ele descontava nos dois, principalmente quando brigava
com alguma de suas putas ou era demitido de algum emprego. À medida que o
garoto foi crescendo, passou a focar as surras mais nele. A mãe gritava e
chorava demais e aquilo o irritava mais ainda, já João começou a ganhar
resistência e de certa maneira começou até a criar uma indiferença à violência
constante que sofria, apanhava calado e muitas vezes nem derramava uma lágrima.
Tudo isso, com certeza
endureceu bastante o menino, levava essa experiência de casa pra todo lugar que
fosse, principalmente na escola. Achava que toda a humanidade era um monstro
como o seu pai, em sua cabeça a única que compartilhava de seus males era a
mãe, mas começava a nutrir também certa raiva por ela, por não entender como aguentava
ficar com aquele babaca. Isso contribuía para que odiasse a todos em sua volta,
na escola não conversava com ninguém, achava as aulas chatas e os professores
uns idiotas.
No colegial a única
disciplina que gostava era história, ficava fascinado com civilizações antigas
e todos os mitos que carregavam, aqueles mundos distantes começavam a se
construir como um refúgio para João. Sempre tirava nota máxima na disciplina e
questionava frequentemente os professores sobre leituras extras e lia todas que
eram passadas. Alguns professores de história até se sentiam importunados pelo
garoto, pois começou a fazer questionamentos tão complexos e muitas vezes,
corrigia seus mestres na frente da turma toda. Aquilo deixava os professores
bastante irritados. Colocavam-no para fazer resumos gigantescos e João não
entendia aquilo e muito menos encarava como um castigo, entregava todos, alguns
até antes do prazo.
Quando chegou ao ensino
médio, descobriu a literatura. Aquilo foi incrível para ele, não se tratava
apenas de histórias distantes que já aconteceram, mas sim de questões
imaginárias e subjetivas, personalidades complexas que João não encontrava no
seu dia a dia. Finalmente encontrou com quem dialogar, sobre todos os seus
anseios e angústias. Todos os livros que os professores passavam ele lia, não
ficava só nos resumos como seus colegas, por muitas vezes deixava de fazer
lições de outras disciplinas só para conseguir terminar de ler os livros de
literatura.
As descrições
detalhadas que os autores faziam e o realismo que as obras possuíam, fazia com
que João assumisse para si todas as teorias dos personagens que conhecia. Em um
mês pensava de acordo com as loucuras de Quincas Borbas, num outro sentia todas
as aflições de Emma Bovary, logo em seguida sua personalidade já buscava
manifestar toda a complexidade de Raskólnikov.
Suas redações eram as
melhores, porém as mais melancólicas e pessimistas. Alguns professores de
literatura chegaram a ficar preocupados com o João, pois com todo o
brilhantismo que o garoto escrevia, aquele conteúdo poderia refletir sérios
problemas. O fato é que ele teve dificuldades para terminar o ensino médio,
apesar das boas notas em história e literatura, saía mal em todas as outras
matérias, provavelmente só passou nas disciplinas porque os outros professores
já não suportavam mais olhar para a cara dele.
Sabia muito bem que não
conseguiria passar no vestibular de uma universidade pública, sempre odiou toda
a decoreba que era necessário para isso. Sabia mais ainda que não tinha grana
para pagar uma universidade particular, até porque, quando fez dezoito anos seu
pai o chutou para fora de casa. Só restava a ele uma única alternativa: arrumar
um emprego qualquer para poder sobreviver. Era uma realidade que a maioria da
juventude do país enfrentava, mas João se sentia diferente, provavelmente por
todos os livros que já tinha lido. E de fato era, mesmo que não tivesse nada de
especial, dentro de si, sentia que possuía uma cultura muito superior a dos
demais jovens da sua idade.
- Ei João! Você está
bem? – perguntou o mestre de obras.
“Merda, não é possível
que isso esteja acontecendo justo agora e justo comigo” – nisso o rapaz caiu de
joelhos na frente de todos e começou a vomitar. Era um vômito amarelo, porque
João não havia tomado café da manhã naquele dia também.
- Iii rapaz, o
caladinho tá no ruim, olha lá.
- Pois é, deve ter
enchido a cara ontem.
Um dos mais velhos se
aproximou de João:
- Ou, quer ajuda?
- Não fode cara, me
deixa em paz.
- Ah, vai à merda sô.
O mestre de obras
percebendo toda aquela situação e a agitação do pessoal, preocupado também com
que aquilo atrapalhasse o serviço, dispensou João naquele momento. Ele
simplesmente juntou forças para levantar e saiu cambaleando em direção ao ponto
de ônibus. As pessoas que passavam por ele na calçada achavam que estava
topando com um zumbi, porque andava em zig-zag e estava extremamente pálido.
Pouco tempo depois de
ter sentado no ponto, o ônibus chegou. Quando entrou percebeu que era o mesmo
ônibus que lhe deixou no serviço um pouco mais cedo. E dito e feito, lá estava
o chão do veículo com uma substância marrom já seca e adicionada a ela se
encontrava outra na coloração vermelha.
“Não é possível” –
pensou João.
- Cobrador, por acaso
alguém caiu aqui no ônibus hoje?
- Ué rapaz e não é que
caiu. Hoje mais cedo uma mulher vomitou aqui, depois subiu outra e não viu,
escorregou no vômito, bateu a cabeça e tudo. Tivemos até que parar o ônibus e
chamar ambulância – Nisso, parou e observou melhor João e reconheceu o rapaz.
- Ah! Você tava aqui
mais cedo né? Cê deve ter visto a mulher vomitando então. Rapaz, cê parece que tá
no ruim também hein.
- Não, tô de boa, é só
a falta de sol mesmo – disse João com uma voz fraca e procurando um lugar pra
sentar.
Sentou e atrás dele
estava sentada uma mulher muito gorda que fungava bem fundo com o nariz a cada
dois segundos. Não bastasse isso, à medida que o ônibus ia andando, ela ficava
olhando para as pessoas na rua e tentava fazer um comentário maldoso sobre
todas que conseguisse. Seus comentários eram muito altos, às vezes, os fazia
aos berros e até se levantava durante alguns segundos e depois voltava a
sentar.
- FILHO DA PUTA, É UM
IDIOTA MESMO, OLHÁ LÁ, QUE OTÁRIO.
- NÃO ACREDITO, OLHA
QUE BABACA, QUERENDO ENTRAR NA FRENTE DO ÔNIBUS, TROUXA, FILHA DA PUTA!
- PUTA QUE PARIU, QUE
HOMEM FEIO DA PORRA, PARECE O FRANKSTEIN!
Essa mulher estava
dando nos nervos de João, o que é que ela tinha? Por que agia daquela maneira?
Parecia odiar o mundo, muito mais do que ele. Por mais que fosse avesso as
pessoas, não perdia seu tempo com elas, já aquela senhora, parecia que tinha
algo a resolver com todo mundo. As fungadas continuavam cada vez mais fortes, soavam
como se viessem do fundo de uma caverna profunda, entravam como um trovão
dentro da cabeça de João.
- OLHA LÁ, SUA
DESGRAÇADA. MADAME NOJENTA, SÓ DE BOA NESSE AR CONDICIONADO. VEM CÁ SUA PUTA,
PRA EU TE ENSINAR O QUE É BOM!
João perdeu a
paciência, reuniu as últimas energias que tinha virou-se e começou a falar com
ela:
- Minha senhora, eu não
sei o que você tem. Mas eu não to muito bem, eu sei que hoje não tá um dia
fácil pra ninguém, mas ninguém é obrigado a ficar aguentando a senhora aí
xingando aos berros todo mundo desse jeito. Sem contar que essas fungadas que
você dá com o nariz a todo segundo são insuportáveis.
Essa última frase foi o
suficiente para que a mulher desconsiderasse todo o resto que João já tinha
falado e se transformasse numa quimera. Levantou-se mais uma vez e começou a
esgoelar com ele:
- ESCUTA SEU MULEQUINHO
FILHO DE UMA PUTA, MEU NARIZ TE INCOMODA É? – Nesse momento deu uma escarrada
tão forte que pareceu que o ônibus todo havia tremido e logo em seguida cuspiu
no pé de João – ASSIM TÁ BOM PRA VOCÊ? E ESCUTA AQUI, EU XINGO QUEM EU QUISER,
OK?
João olhou para seu pé
com toda aquela meleca e olhou mais uma vez para a mulher. Parece que naquele momento
suas energias tinham até voltado, se levantou calmamente, foi até ela e limpou
o sapato com a barra do vestido da estressada. Os demais passageiros olhavam
toda aquela cena, atônitos. Não conseguiam acreditar que aquilo estava
acontecendo no ônibus. A mesma reação tinham o cobrador e o motorista, sentiam
que estavam num programa sensacionalista de televisão e apesar do espanto, de
certo modo vibravam internamente com tudo aquilo e por isso mesmo não interviam
em nada.
- Minha senhora esse
cuspe no meu sapato é tão insignificante quanto a sua existência, pobre do seu
vestido duplamente: por tocar o seu corpo e por agora ter sido usado para
limpar algo que foi produzido por esse monte de banha empilhada. Provavelmente
você xinga todo mundo, porque sabe que a sua própria existência e presença já são
uma ofensa a humanidade em si, não teria como não tentar devolver, não é? A
maioria das pessoas são dignas de pena, mas o seu caso é diferente. Você merece
ser desconsiderada. Ter pena de você, já seria dar atenção de mais a um ser que
a presença na terra não se explica, a não ser por acidente grotesco e horrendo
da natureza...
Enquanto João proferia
essas frases, a mulher estava paralisada e de repente todo aquele enorme corpo
começou a ter convulsões, parecia que ia explodir e foi realmente o que
aconteceu. Explodiu em um jato de vômito enorme, um tubo grosso e negro. Aquilo
atingiu o peitoral de João em cheio, ele chegou a cair pra trás, buscando
segurar em um dos bancos para não se machucar seriamente. A mulher caiu sentada
também, chorando em soluços, as outras pessoas que estavam no ônibus, agora sim
estavam em estado de choque total. Parecia que não havia motorista, que estava
no piloto automático. João imediatamente levantou-se e puxou a cordinha, o
ruído que isso produziu despertou a todos sendo que o motorista deu uma freada
brusca, já abrindo as portas naquele instante, sem ao menos ainda ter chegado ao
ponto de parada.
O rapaz desceu correndo
do veículo e caminhando rapidamente terminou a pé o trajeto de volta para sua
casa. Caminhava totalmente absorvido em seus pensamentos, mal observava o
caminho que fazia. Eram pensamentos confusos e contraditórios que vagavam em
sua cabeça, na expectativa de que através de uma colisão conseguiria formar um
nexo sobre tudo o que havia ocorrido naquele dia. De repente, a luz surgiu,
João parou repentinamente de caminhar e parado, olhando para o chão teve
clareza daquela ideia.
Apesar do cheiro
horrível que exalava do seu corpo, impregnado pelo vômito daquela mulher do
ônibus, João enxergava isso justamente como a resposta: o vômito. Desde o
inicio era ele que se comunicava com o rapaz, da mulher grávida, do seu próprio
vômito e do último caso quando vomitaram nele. Eram sinais nítidos. Sobre o
que? Sobre a própria existência humana. João aprendeu naquele dia, que o vômito
de uma pessoa dizia muito mais sobre ela do que ele poderia imaginar. A
coloração, a consistência, a composição e a quantidade poderiam exatamente
dizer o que se passava na vida daquela pessoa.
A mulher grávida: um
vômito marrom e de uma consistência pastosa superficial, com pequenos pedaços
de comida. Tudo isso revelava que ela tentava se alimentar bem, mas que
conseguia comer apenas o suficiente, o básico, não era um vômito constituído
por muitas coisas. Porém seu bebê precisava de mais e aquela comida simples que
ela ingeria todo dia, estava fazendo mal pra ele e também pra ela. O pai da
criança a abandonou. Era difícil conseguir um emprego com uma gravidez já
naquele estágio avançado, morava de favor com a mãe, a senhora que tentava
acalmá-la no banco de trás, mas a mãe também era pobre e divorciada do marido,
por isso só conseguia colocar o básico na mesa.
Sobre vômito de João,
nem era necessário pensar muito. A coloração amarela já revelava praticamente
tudo sobre aquele rapaz. Tudo que foi dito aqui, sua extrema pobreza e o orgulho
de não comprar fiado ou pedir dinheiro emprestado ou até mesmo um prato de
comigo a alguém. Por isso mesmo, quase não se alimentava e quando vomitava a única
coisa que lhe restava era a própria bílis.
A revelação sobre o
vômito daquela mulher gorda foi a mais assustadora para João. Ela estava
morrendo! A cor negra do vômito que foi despejado sobre o seu peito,
significava que para além do alimento e dos ácidos produzidos no estômago,
havia sangue misturado a tudo isso. Combinação que resultava naquela cor negra.
Sim, era por isso que xingava a todos. Uma doença grave, que quando recebeu o
diagnóstico já era tarde de mais. Não havia tratamento e nenhum médico
conseguia explicar o surgimento da doença, dia após dia a hemorragia interna
aumentava. Não era uma senhora muito religiosa, o único conforto que lhe restou
foi voltar-se contra o mundo, contra todas as pessoas. Malditas eram elas que
ainda possuíam saúde e não valorizavam isso. Não sabiam o que era estar com os
dias contados.
Chegando em casa, João
sequer se lavou ou ao menos tirou a roupa. Colocou na vitrola um vinil de jazz
pra tocar, a única coisa boa que seu pai havia deixado. Foi até a cozinha e
apanhou uma garrafa de conhaque barato, tirou a rolha e começou a beber deitado
no sofá, que por sinal também era sua cama. À medida que a música ia crescendo
João ria, ria descontroladamente. Da condição daquelas duas mulheres, da sua
própria condição, da sua mãe e no final da risada ofereceu um brinde a seu
velho pai. Mentiu sobre a análise de seu vômito, mentiu porque não pesou que
toda a noite virava quase uma garrafa de conhaque ou de aguardente e que dentro
de si uma violência enorme crescia. Como não tinha pessoas a sua volta, o único
foco que restava era ele mesmo. Por isso, de tempos em tempos, seu corpo denunciava a
todas essas agressões, através de um simples, um ruidoso vômito.