segunda-feira, 31 de março de 2014

O vômito

Quando João Paulo olhou no celular batiam exatamente sete e trinta e cinco da manhã, o ônibus passava por uma rua qualquer da periferia da cidade. João guardou o celular no bolso, apoiou o cotovelo na janela do ônibus e começou a cochilar. Toda vez que o veículo caía em um buraco, o rapaz era arremessado por milésimos de segundos ao ar e retornava ao seu acento, nesses momentos acordava rapidamente e logo voltava a cochilar.
Trabalhava de pedreiro numa obra, era uma pena que o ônibus rodasse tanto antes de chegar ao seu destino e ao mesmo tempo era uma benção, pois ele aproveitava pra dormir um pouco mais. A carcaça de lata ia praticamente vazia, sempre os mesmos passageiros e o cobrador com o motorista fazendo suas piadas malucas. João já conhecia bem todos ali, apesar de nunca ter conversado com eles.
Ficava sempre na sua, nunca puxava assunto, sentava em um lado do ônibus que com o tempo aprendeu que era o que menos batia sol durante todo o trajeto. Não gostava muito do sol. Quando caminhava, buscava sempre andar pela sombra. Um verdadeiro vampiro, se pudesse, viveria somente à noite. Um vampiro forçado a se expor a luz do dia. Tudo isso só para conseguir o seu bendito sanguinho, o seu alimento, o salário no fim do mês.
De repente começou a sentir um cheiro azedo, nem todos os buracos do mundo que o ônibus poderia cair faria o acordar daquele jeito. Pensou: “que porra é essa?”. Acordando e olhando em volta, viu que perto da porta de saída mais a frente, num banco do lado direito, o chão estava coberto por um líquido pastoso e marrom. Quando pensou em descobrir a origem daquilo visualizou no banco que a mulher ainda estava vomitando, mas já estava no estágio final. Saía da boca dela agora apenas um fio transparente que João nem conseguia imaginar no que consistia aquilo. Em outro banco, sentada atrás, uma senhora tentava acalmá-la.
- Calma minha filha, já tá passando, tá. Agorinha a gente desce.
- Eu falei pro motorista que eu tava passando mal e ele não quis parar. Eu não queria ter feito isso. – Seus olhos estavam vermelhos e lacrimejavam, provavelmente estava com muita vergonha.
Os poucos passageiros que estavam ali perto começaram todos a ir para o fundo do ônibus. Muitos queriam descer naquele momento, puxaram imediatamente a cordinha como se estivessem sufocando. João foi o único que continuou parado no seu lugar, ainda tentando esquecer aquele cheiro e voltar para o seu cochilo. Olhou para o cobrador e percebeu que o cara se sensibilizava com todo o drama daquela mulher, mas que de certa maneira estava impossibilitado de fazer qualquer coisa, ao menos deveria ser o que o cobrador pensava naquele momento.
João então abriu um pouco da sua janela. Não costumava deixa-la fechada, mas aquele dia estava um pouco mais frio do que os outros. Não conseguiu voltar a cochilar, acabou observando aquela cena mais uma vez. A poça de vômito agora estava um pouco menos densa, um líquido de cor marrom claro já tinha se espalhado mais pelo chão do veículo e no centro da poça observou pequenos pedaços, provavelmente de carne que a mulher tinha comido.
“Será que ela precisa de ajuda? Acho que não, a senhora ali já tá ajudando ela, logo logo elas devem descer. Mas será que essa merda toda vai ficar aqui até quando? E se alguém escorregar em tudo isso aí? A coisa vai ficar pior ainda, provavelmente vamos ter vômito misturado a sangue”, continuava João, refletindo sobre o que estava acontecendo.
O ônibus parou em dois pontos, até que no terceiro as duas mulheres desceram, ele observou que a do vômito estava grávida. “Humn, então não foi por causa da carne picadinha estragada”, agora tudo fazia sentido em sua cabeça. Mais dois pontos pra frente era sua hora de descer.
Na porta da construção percebeu que mais uma vez foi o primeiro a chegar, gostava de fazer isso, geralmente escorava em um canto qualquer e ficava cochilando, quando os seus colegas barulhentos chegavam, dava um salto e começava a pegar no batente. Sempre perguntava para o mestre de obras o que tinha que ser feito naquele dia e logo em seguida já metia a mão na massa. Não conversava muito no serviço também, só o básico para que as coisas do trabalho funcionassem. Seus colegas faziam piadas e xingavam uns aos outros o dia inteiro, quando conversavam sobre alguma coisa sempre era sobre mulheres, até o futebol já estava ficando de lado, talvez os times já não estivessem mandando tão bem assim. Havia raras exceções ali, com esses, João até trocava uma palavra ou outra, geralmente eram os mais velhos, já tinham filhos, gostavam também de falar sobre mulheres, mas pareciam estar muito menos no cio do que os outros.
- Que merda aquela coisa toda com o vômito – disse João antes de achar algum lugar para escorar.
Toda essa coisa, fez com que repentinamente, percebesse que esquecera a sua marmita de almoço, agora estava com o estômago embrulhado e no futuro seria adicionada a isso sua fome.
“Porra! Vou ter que comer naquele restaurantizinho.” – Meteu a mão no bolso para procurar algum dinheiro e percebeu que estava zerado. Esqueceu-se do seu cochilo que tradicionalmente tirava na obra e ficou andando de um lado para o outro, pensando no que fazer e ainda sentindo um pouco de enjoo.
- Vou pedir dinheiro para algum dos caras aqui, é isso. Porra, mas eles são chatos pra caramba, vão ficar me enchendo o saco o dia inteiro. Vou pedir pra um dos mais velhos, com certeza é melhor assim. Mas merda, os caras são tão duros quanto eu. Pelo visto, só me resta o mestre de obras, mas se pedir grana pra aquele babaca, isso vai fazer com que ele se sinta superior a mim, eu é que não vou dar mole pra aquele cara.
Enquanto João pensava sobre essas questões, o resto do pessoal começou a chegar à obra. Todos o cumprimentavam e ele nem respondia, ficava parado e continuava a refletir. Ninguém gostava muito dele mesmo, então para eles aquilo não fazia muita diferença. O único que gostava um pouco mais era o mestre de obras, por João não conversar muito, o trabalho que fazia geralmente ficava muito bom.
O rapaz se achava mais inteligente do que todos ali. Cursou somente até o ensino médio, a maioria dos seus colegas também, alguns nem chegaram a isso. Mas João, talvez tenha tido uma infância diferente dos demais. Muitos deles nunca conheceram o pai ou se conheceram já tinham esquecido a figura paterna. João lembrava-se muito bem do pai, queria nunca ter o conhecido, mas a memória do velho não saía da sua cabeça.
Infelizmente uma clássica figura da nossa sociedade, o velho era alcoólatra e batia tanto na esposa como no filho. João era filho único, então sua mãe era a única com quem dividia as surras. Apanhavam geralmente porque discordavam de pequenas questões do pai, quando este estava embriagado e discordância o desgraçado não admitia. Às vezes, apanhavam sem nenhum motivo mesmo, provavelmente alguma coisa havia o irritado fora de casa e ele descontava nos dois, principalmente quando brigava com alguma de suas putas ou era demitido de algum emprego. À medida que o garoto foi crescendo, passou a focar as surras mais nele. A mãe gritava e chorava demais e aquilo o irritava mais ainda, já João começou a ganhar resistência e de certa maneira começou até a criar uma indiferença à violência constante que sofria, apanhava calado e muitas vezes nem derramava uma lágrima.
Tudo isso, com certeza endureceu bastante o menino, levava essa experiência de casa pra todo lugar que fosse, principalmente na escola. Achava que toda a humanidade era um monstro como o seu pai, em sua cabeça a única que compartilhava de seus males era a mãe, mas começava a nutrir também certa raiva por ela, por não entender como aguentava ficar com aquele babaca. Isso contribuía para que odiasse a todos em sua volta, na escola não conversava com ninguém, achava as aulas chatas e os professores uns idiotas.
No colegial a única disciplina que gostava era história, ficava fascinado com civilizações antigas e todos os mitos que carregavam, aqueles mundos distantes começavam a se construir como um refúgio para João. Sempre tirava nota máxima na disciplina e questionava frequentemente os professores sobre leituras extras e lia todas que eram passadas. Alguns professores de história até se sentiam importunados pelo garoto, pois começou a fazer questionamentos tão complexos e muitas vezes, corrigia seus mestres na frente da turma toda. Aquilo deixava os professores bastante irritados. Colocavam-no para fazer resumos gigantescos e João não entendia aquilo e muito menos encarava como um castigo, entregava todos, alguns até antes do prazo.
Quando chegou ao ensino médio, descobriu a literatura. Aquilo foi incrível para ele, não se tratava apenas de histórias distantes que já aconteceram, mas sim de questões imaginárias e subjetivas, personalidades complexas que João não encontrava no seu dia a dia. Finalmente encontrou com quem dialogar, sobre todos os seus anseios e angústias. Todos os livros que os professores passavam ele lia, não ficava só nos resumos como seus colegas, por muitas vezes deixava de fazer lições de outras disciplinas só para conseguir terminar de ler os livros de literatura.
As descrições detalhadas que os autores faziam e o realismo que as obras possuíam, fazia com que João assumisse para si todas as teorias dos personagens que conhecia. Em um mês pensava de acordo com as loucuras de Quincas Borbas, num outro sentia todas as aflições de Emma Bovary, logo em seguida sua personalidade já buscava manifestar toda a complexidade de Raskólnikov.
Suas redações eram as melhores, porém as mais melancólicas e pessimistas. Alguns professores de literatura chegaram a ficar preocupados com o João, pois com todo o brilhantismo que o garoto escrevia, aquele conteúdo poderia refletir sérios problemas. O fato é que ele teve dificuldades para terminar o ensino médio, apesar das boas notas em história e literatura, saía mal em todas as outras matérias, provavelmente só passou nas disciplinas porque os outros professores já não suportavam mais olhar para a cara dele.
Sabia muito bem que não conseguiria passar no vestibular de uma universidade pública, sempre odiou toda a decoreba que era necessário para isso. Sabia mais ainda que não tinha grana para pagar uma universidade particular, até porque, quando fez dezoito anos seu pai o chutou para fora de casa. Só restava a ele uma única alternativa: arrumar um emprego qualquer para poder sobreviver. Era uma realidade que a maioria da juventude do país enfrentava, mas João se sentia diferente, provavelmente por todos os livros que já tinha lido. E de fato era, mesmo que não tivesse nada de especial, dentro de si, sentia que possuía uma cultura muito superior a dos demais jovens da sua idade.
- Ei João! Você está bem? – perguntou o mestre de obras.
“Merda, não é possível que isso esteja acontecendo justo agora e justo comigo” – nisso o rapaz caiu de joelhos na frente de todos e começou a vomitar. Era um vômito amarelo, porque João não havia tomado café da manhã naquele dia também.
- Iii rapaz, o caladinho tá no ruim, olha lá.
- Pois é, deve ter enchido a cara ontem.
Um dos mais velhos se aproximou de João:
- Ou, quer ajuda?
- Não fode cara, me deixa em paz.
- Ah, vai à merda sô.
O mestre de obras percebendo toda aquela situação e a agitação do pessoal, preocupado também com que aquilo atrapalhasse o serviço, dispensou João naquele momento. Ele simplesmente juntou forças para levantar e saiu cambaleando em direção ao ponto de ônibus. As pessoas que passavam por ele na calçada achavam que estava topando com um zumbi, porque andava em zig-zag e estava extremamente pálido.
Pouco tempo depois de ter sentado no ponto, o ônibus chegou. Quando entrou percebeu que era o mesmo ônibus que lhe deixou no serviço um pouco mais cedo. E dito e feito, lá estava o chão do veículo com uma substância marrom já seca e adicionada a ela se encontrava outra na coloração vermelha.
“Não é possível” – pensou João.
- Cobrador, por acaso alguém caiu aqui no ônibus hoje?
- Ué rapaz e não é que caiu. Hoje mais cedo uma mulher vomitou aqui, depois subiu outra e não viu, escorregou no vômito, bateu a cabeça e tudo. Tivemos até que parar o ônibus e chamar ambulância – Nisso, parou e observou melhor João e reconheceu o rapaz.
- Ah! Você tava aqui mais cedo né? Cê deve ter visto a mulher vomitando então. Rapaz, cê parece que tá no ruim também hein.
- Não, tô de boa, é só a falta de sol mesmo – disse João com uma voz fraca e procurando um lugar pra sentar.
Sentou e atrás dele estava sentada uma mulher muito gorda que fungava bem fundo com o nariz a cada dois segundos. Não bastasse isso, à medida que o ônibus ia andando, ela ficava olhando para as pessoas na rua e tentava fazer um comentário maldoso sobre todas que conseguisse. Seus comentários eram muito altos, às vezes, os fazia aos berros e até se levantava durante alguns segundos e depois voltava a sentar.
- FILHO DA PUTA, É UM IDIOTA MESMO, OLHÁ LÁ, QUE OTÁRIO.
- NÃO ACREDITO, OLHA QUE BABACA, QUERENDO ENTRAR NA FRENTE DO ÔNIBUS, TROUXA, FILHA DA PUTA!
- PUTA QUE PARIU, QUE HOMEM FEIO DA PORRA, PARECE O FRANKSTEIN!
Essa mulher estava dando nos nervos de João, o que é que ela tinha? Por que agia daquela maneira? Parecia odiar o mundo, muito mais do que ele. Por mais que fosse avesso as pessoas, não perdia seu tempo com elas, já aquela senhora, parecia que tinha algo a resolver com todo mundo. As fungadas continuavam cada vez mais fortes, soavam como se viessem do fundo de uma caverna profunda, entravam como um trovão dentro da cabeça de João.
- OLHA LÁ, SUA DESGRAÇADA. MADAME NOJENTA, SÓ DE BOA NESSE AR CONDICIONADO. VEM CÁ SUA PUTA, PRA EU TE ENSINAR O QUE É BOM!
João perdeu a paciência, reuniu as últimas energias que tinha virou-se e começou a falar com ela:
- Minha senhora, eu não sei o que você tem. Mas eu não to muito bem, eu sei que hoje não tá um dia fácil pra ninguém, mas ninguém é obrigado a ficar aguentando a senhora aí xingando aos berros todo mundo desse jeito. Sem contar que essas fungadas que você dá com o nariz a todo segundo são insuportáveis.
Essa última frase foi o suficiente para que a mulher desconsiderasse todo o resto que João já tinha falado e se transformasse numa quimera. Levantou-se mais uma vez e começou a esgoelar com ele:
- ESCUTA SEU MULEQUINHO FILHO DE UMA PUTA, MEU NARIZ TE INCOMODA É? – Nesse momento deu uma escarrada tão forte que pareceu que o ônibus todo havia tremido e logo em seguida cuspiu no pé de João – ASSIM TÁ BOM PRA VOCÊ? E ESCUTA AQUI, EU XINGO QUEM EU QUISER, OK?
João olhou para seu pé com toda aquela meleca e olhou mais uma vez para a mulher. Parece que naquele momento suas energias tinham até voltado, se levantou calmamente, foi até ela e limpou o sapato com a barra do vestido da estressada. Os demais passageiros olhavam toda aquela cena, atônitos. Não conseguiam acreditar que aquilo estava acontecendo no ônibus. A mesma reação tinham o cobrador e o motorista, sentiam que estavam num programa sensacionalista de televisão e apesar do espanto, de certo modo vibravam internamente com tudo aquilo e por isso mesmo não interviam em nada.
- Minha senhora esse cuspe no meu sapato é tão insignificante quanto a sua existência, pobre do seu vestido duplamente: por tocar o seu corpo e por agora ter sido usado para limpar algo que foi produzido por esse monte de banha empilhada. Provavelmente você xinga todo mundo, porque sabe que a sua própria existência e presença já são uma ofensa a humanidade em si, não teria como não tentar devolver, não é? A maioria das pessoas são dignas de pena, mas o seu caso é diferente. Você merece ser desconsiderada. Ter pena de você, já seria dar atenção de mais a um ser que a presença na terra não se explica, a não ser por acidente grotesco e horrendo da natureza...
Enquanto João proferia essas frases, a mulher estava paralisada e de repente todo aquele enorme corpo começou a ter convulsões, parecia que ia explodir e foi realmente o que aconteceu. Explodiu em um jato de vômito enorme, um tubo grosso e negro. Aquilo atingiu o peitoral de João em cheio, ele chegou a cair pra trás, buscando segurar em um dos bancos para não se machucar seriamente. A mulher caiu sentada também, chorando em soluços, as outras pessoas que estavam no ônibus, agora sim estavam em estado de choque total. Parecia que não havia motorista, que estava no piloto automático. João imediatamente levantou-se e puxou a cordinha, o ruído que isso produziu despertou a todos sendo que o motorista deu uma freada brusca, já abrindo as portas naquele instante, sem ao menos ainda ter chegado ao ponto de parada.
O rapaz desceu correndo do veículo e caminhando rapidamente terminou a pé o trajeto de volta para sua casa. Caminhava totalmente absorvido em seus pensamentos, mal observava o caminho que fazia. Eram pensamentos confusos e contraditórios que vagavam em sua cabeça, na expectativa de que através de uma colisão conseguiria formar um nexo sobre tudo o que havia ocorrido naquele dia. De repente, a luz surgiu, João parou repentinamente de caminhar e parado, olhando para o chão teve clareza daquela ideia.
Apesar do cheiro horrível que exalava do seu corpo, impregnado pelo vômito daquela mulher do ônibus, João enxergava isso justamente como a resposta: o vômito. Desde o inicio era ele que se comunicava com o rapaz, da mulher grávida, do seu próprio vômito e do último caso quando vomitaram nele. Eram sinais nítidos. Sobre o que? Sobre a própria existência humana. João aprendeu naquele dia, que o vômito de uma pessoa dizia muito mais sobre ela do que ele poderia imaginar. A coloração, a consistência, a composição e a quantidade poderiam exatamente dizer o que se passava na vida daquela pessoa.
A mulher grávida: um vômito marrom e de uma consistência pastosa superficial, com pequenos pedaços de comida. Tudo isso revelava que ela tentava se alimentar bem, mas que conseguia comer apenas o suficiente, o básico, não era um vômito constituído por muitas coisas. Porém seu bebê precisava de mais e aquela comida simples que ela ingeria todo dia, estava fazendo mal pra ele e também pra ela. O pai da criança a abandonou. Era difícil conseguir um emprego com uma gravidez já naquele estágio avançado, morava de favor com a mãe, a senhora que tentava acalmá-la no banco de trás, mas a mãe também era pobre e divorciada do marido, por isso só conseguia colocar o básico na mesa.
Sobre vômito de João, nem era necessário pensar muito. A coloração amarela já revelava praticamente tudo sobre aquele rapaz. Tudo que foi dito aqui, sua extrema pobreza e o orgulho de não comprar fiado ou pedir dinheiro emprestado ou até mesmo um prato de comigo a alguém. Por isso mesmo, quase não se alimentava e quando vomitava a única coisa que lhe restava era a própria bílis.
A revelação sobre o vômito daquela mulher gorda foi a mais assustadora para João. Ela estava morrendo! A cor negra do vômito que foi despejado sobre o seu peito, significava que para além do alimento e dos ácidos produzidos no estômago, havia sangue misturado a tudo isso. Combinação que resultava naquela cor negra. Sim, era por isso que xingava a todos. Uma doença grave, que quando recebeu o diagnóstico já era tarde de mais. Não havia tratamento e nenhum médico conseguia explicar o surgimento da doença, dia após dia a hemorragia interna aumentava. Não era uma senhora muito religiosa, o único conforto que lhe restou foi voltar-se contra o mundo, contra todas as pessoas. Malditas eram elas que ainda possuíam saúde e não valorizavam isso. Não sabiam o que era estar com os dias contados.
Chegando em casa, João sequer se lavou ou ao menos tirou a roupa. Colocou na vitrola um vinil de jazz pra tocar, a única coisa boa que seu pai havia deixado. Foi até a cozinha e apanhou uma garrafa de conhaque barato, tirou a rolha e começou a beber deitado no sofá, que por sinal também era sua cama. À medida que a música ia crescendo João ria, ria descontroladamente. Da condição daquelas duas mulheres, da sua própria condição, da sua mãe e no final da risada ofereceu um brinde a seu velho pai. Mentiu sobre a análise de seu vômito, mentiu porque não pesou que toda a noite virava quase uma garrafa de conhaque ou de aguardente e que dentro de si uma violência enorme crescia. Como não tinha pessoas a sua volta, o único foco que restava era ele mesmo. Por isso, de tempos em tempos, seu corpo denunciava a todas essas agressões, através de um simples, um ruidoso vômito.





2 comentários:

  1. Muito bom Marcos, gosto do que escreve. Este texto é o mais maduro dos textos seus já lidos por mim. Tenho a impressão de que está se desenvolvendo rapidamente como um escritor. Há ainda qualquer desarmonia no texto, a vejo no modo como reveza na narrativa as passagens dialogadas e as descrições dos eventos passados ou dos estados mentais ou ainda dos pensamentos das personagens. Busque se aperfeiçoar neste ponto, no revezamento das tipologias. De um modo geral eu gostei muito e quero continuar lendo os seus textos. Um abraço, Thiago.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Thiago, fico sempre grato por suas dicas, ela me ajudam bastante. E que bom que você está gostando do que estou escrevendo. Um forte abraço meu querido

      Excluir