Abri os olhos e estava
tudo verde. Era a fronha do meu travesseiro. Levantei um pouco a cabeça e senti
que um fio de baba que vinha do canto esquerdo da boca ainda me conectava com
aquele travesseiro. “Merda de ressaca” e pensei também “que se foda o trabalho
hoje”, a única coisa que eu queria era conseguir chegar ao banheiro, expulsar
toda minha podridão de espírito através de uma bela cagada e ficar horas no
chuveiro.
Olhei no celular e já
batia mais de dez horas da manhã, como mágica, assim que acabei de olhar as
horas o filho da puta tocou, era do trabalho. Ainda não entendi porque tenho
esse celular, boa parte do tempo ele só contribui para que os outros me fodam e
nesse caso com certeza era algo assim.
- Luis, aqui quem fala
é a Marlene, estamos ligando para o senhor para saber qual é o motivo do senhor
não ter comparecido na firma hoje.
- Marlene, aqui quem
fala é o Augusto, o Luis foi espiar o cu de uma vaca, e ela engoliu ele todinho
pela bunda, já era pra ele. – e desliguei o telefone.
Mais um emprego jogado
no ralo. Fazer o que? Agora o país era a sexta economia mundial, empregos de
merda estavam sendo oferecidos a todo momento e ainda tem gente que reclama do
atual governo. Era uma pena eu não ter saco pra me inscrever nesses programas
sociais.
Chegando ao banheiro
foi dito e feito. Cinquenta por cento da minha ressaca foi deixada no vazo. Porque
que a maioria das pessoas não gosta de falar de merda? Mas muitas delas acham
engraçado falar de peidos? Vai saber.
Depois liguei o
chuveiro, sentei no chão do banheiro e fiquei lá olhando para o teto manchado
de preto com a água caindo em cima de mim. Não estava preocupado com o valor
das contas que as companhias mandariam. A luz, toda vez que cortavam, eu ia lá
e fazia um gato. A água, era a mesma coisa: trancavam o registro e logo em
seguida eu ia lá e quebrava o lacre. Com o passar do tempo aprendi quanto tempo
eles demoravam pra voltar e olhar se eu não tinha feito alguma gambiarra.
Quando estava próximo da data, ia lá e maquiava as coisas, ficava realmente
parecendo que tudo ainda estava cortado. Só pagava as contas mais atrasadas
quando pressentia que me levariam pra justiça. Meu esquema é perfeito. Aprendi
todos esses truques com o meu pai, o velho era bom nisso. Poderia dar aula pra
qualquer engenheiro graduado.
Saindo do banho, senti
que precisava comer. Pensei em cozinhar, talvez um arroz com carne moída, mas
as panelas estavam todas sujas e a pilha de louça estava tão grande que não
sabia nem por onde começar. Aquela louça era um mostrengo que ficava me
encarando, doido pra me devorar. É por isso, que muitas vezes eu passava dias sem
colocar os pés na cozinha da minha casa.
Pensei que um pão com
mortadela seria a solução, com certeza seria. Olhei pra mim e ainda estava
pelado. Gostava de ficar pelado na minha casa. Se não fosse a chateação que
isso geraria, andaria pelado na rua também. Coloquei uma camiseta amarrotada e
percebi que minha barriga estava maior, a cerveja estava deixando suas marcas
no meu corpo. Coloquei um calção e nem me lembrei de colocar a cueca. Às vezes
um balanço para os bagos faz bem para os danados, mas só às vezes.
- Sr. Márcio me vê três
pães e 200g de mortadela – gostava de comprar pães em quantidades ímpares.
- Tá numa ressaca, hein
Luis – sr. Márcio disse isso dando uma limpada com o braço no seu grosso
bigode. Pelo prato que vi no balcão parecia que ele tinha acabado de comer uma
bela pratada de macarrão. Ah que inveja! Meu estômago ficou desesperado ao ver
aquele prato.
Chegando em casa, abri
os pães com a mão mesmo e meti a mortadela lá dentro, devorei tudo num piscar
de olhos. Pronto, agora setenta por cento da minha ressaca já tinha passado,
ainda estava pensando em que fazer com os outros trinta. Pensei que agora que
meu emprego já era, tinha que tomar as providências para conseguir outro. Era simples,
bastava ir numa agencia da prefeitura e ver o que eles tinham a oferecer. Se os
caras perguntarem se você sabe cuspir fogo, diga que sim. Depois de contratado,
devem realmente fazer você cuspir fogo, só de sacanagem, mas isso acontece só nos
primeiros dias, logo te esquecem e logo te mandam embora. Mas eu estava
tranquilo, afinal, éramos a sexta economia do mundo. Além do mais, íamos ter
copa e olimpíadas, enquanto eles jogavam o jogo deles, jogava o meu.
Mas hoje não ia
esquentar a cabeça com isso. Era meu dia de patrão, patrão da miséria, mesmo
assim patrão. Arranquei a roupa, joguei no chão mesmo, eram só mais umas no
meio da coleção de roupas que já estavam
espalhadas pela casa. Fui até a estante da sala, peguei um vinil da nona do
Beethoven e coloquei pra rodar na vitrola. Peguei também uma long-neck na
geladeira e comecei a beber sentado na minha poltrona na sala. Mais importante
do que ter um estoque de arroz e carne moída era ter um estoque de cervejas
para me salvar. Ao menos comigo dava certo, agora noventa por cento da ressaca
já estava curada.
Ouvir Beethoven, me fez
lembrar da noite anterior. Foi num desses barzinhos universitários, porque ainda
são os poucos que tocam alguma música decente. Gosto de ficar num canto,
tomando minha cerveja ou vodca e vendo a molecada mandar brasa. Eles são bons,
estão tocando mais jazz agora e isso me agrada muito. Não converso com quase
ninguém, só às vezes quando o bar está muito cheio e percebo que alguma garota
teceu uma frase inteligente, tento puxar conversa, emendar algo sobre o que ela
estava falando. Às vezes rola, às vezes consigo um contato de línguas,
raramente um sexo, mas também basta quando realmente acontece uma conversa
inteligente.
Mas é realmente muito difícil
me relacionar com o pessoal que frequenta esses bares. Nem sou tão mais velho
do que eles, alguns são até mais velhos que eu, mas não dá, me sinto uma
aberração ali. Não entrei na faculdade igual a eles, não rolou pra mim, já
estava me virando sozinho muito antes da época da faculdade, pulando como um
macaco entre os empregos. Porém nem de longe achava que eles fossem mais
espertos do que eu, não existia comparação, éramos espécies diferentes de
humanidade.
Conversavam muito alto,
não prestavam atenção nos músicos, nem a bebida respeitavam e era a juventude
intelectual da nossa cidade. Raras exceções salvavam, mas no geral quando eu
olhava pra tudo aquilo, investia pesado na bebida. Era um dos primeiros a
chegar ao bar e um dos últimos a sair. Muitas vezes quando o bar estava
fechando e eu continuava lá no meu canto enchendo a cara, alguns patetas bêbados
tentavam puxar conversa comigo.
- Ei brother, você é
dos meus. Direto tá aqui, firme e forte, só chapando e nem muda de expressão.
- Vai se foder!
- Iii, tá griladinho
hein. Fica aí na sua mermão.
- Vai se foder ao
quadrado, babaca.
O cara já veio na minha
direção pra tentar engrossar, vendo isso, o dono do bar já gritou: “Vamo parar
com essa porra aí e vamo vazar daqui também”.
Beleza, levantei, nem
olhei para o babaca, paguei minha conta e dei o fora. Mas também não é assim.
Confesso que estou mentindo. Não sou um cara tão durão assim. Muitas vezes, na
verdade me comporto como um idiota, principalmente com as mulheres. A vontade
de sexo pode te pegar pelo pé. Sinto que forço a barra, me exibindo, dizendo
baboseiras poéticas só para querer impressionar. O bom, é que pelo menos nunca
insisto. Logo desanimo e perco a vontade de conversar com todo mundo, mas
quando estou muito bêbado, tem dias que até pareço um deles, um alegre, bêbado e
feliz universitário.
O fato é esse, quando
estamos bêbados todo mundo parece mais interesse, sóbrio, todo mundo é um saco
para mim. Boa parte do tempo, nem eu mesmo me suporto. Só existem dois caras
que eu gosto de conversar. Um saca muito de cinema e música e outro de literatura.
Não são nada de mais, assim como eu, mas não sei o que fazem que me sinto bem
quando estou conversando com eles. Talvez sejam de outra espécie também.
Porra! Pensar em tudo
isso estava fazendo minha ressaca voltar. Estava quase vencendo ela, só faltava
dez por cento agora, não era possível que ia começar a perder. Precisava tomar
fôlego e acabar com essa luta de vez. Peguei o celular e liguei para o cara que
manjava de literatura. Talvez por isso que ainda tinha esse celular.
- Alô?
- Pedro? É o Luis,
beleza?
- O cara, e aí beleza?
Eu to de boa e você como tá?
- To bem cara, ainda
com um pouco de ressaca, to lutando contra ela, logo logo eu derrubo essa
desgraçada.
- Haha só vez mesmo, o
que você fez pra tá assim?
- Que pergunta é essa
cara? Obviamente eu bebi, enchi a cara, como sempre naquele mesmo bar.
- Só to perguntando ué,
e foi bom lá?
- Foi de boa, a mesma
música, as mesmas pessoas parecendo zumbis. Acho que a única diferença é que ao
invés de comer cérebros, eles bebem cerveja.
- Haha boto fé. Deve
ser por isso, que estão fazendo tantos seriados de zumbi assim.
- Sim, claro! Porra, eu
nunca pensaria isso, seu filho da puta, genial.
- Haha, só to zuando.
- Cara, você leu os
diários do Bukowski que foram publicados quando ele estava perto de morrer?
- Com certeza, é
genial. Tenho aqui em casa, dá pra ver bem o porquê que a última novela dele
saiu daquele jeito.
- Pois é. Ou, vou
nessa. Valeu pela conversa Pedro. Abraços.
- Ué tá. Você é muito
maluco mesmo, mas se cuida, qualquer dia a gente marca de beber umas.
Desliguei o telefone.
Finalmente. Olhei para o chão da sala e lá estava minha ressaca estendida.
Parecia uma mulher de quarenta anos só que com a aparência de uma de setenta
por causa de todas as bebedeiras e cigarros que passaram em sua vida. Seus
cabelos eram tingidos de loiro e já estavam bem desbotados. Estava só de blusa
e calcinha. A blusa manchada de vômito e a calcinha também tinha uma mancha,
provavelmente do gozo dela que secou. Tinha vários roxos na perna, mas isso era
o de menos. Uma enorme poça de sangue se formava em volta da sua cabeça e ver
aquela cena me causava um arrepio na espinha mesmo sabendo que fui eu que
causei tudo aquilo. De repente, ela se levantou. Jogou para trás os cabelos
ensopados de sangue, abriu a porta da sala e antes de sair olhou para mim dando
uma piscadinha e disse: “VAI SE FODER”.
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