Murilim corre corre que
não para. A rua é asfaltada, mas é tanta terra vinda das outras que não são,
que a rua em que Murilim corre, parece mais estrada de chão. Passa por tudo sem
se aperceber, os motoristas irados buzinam para ele vindo na contramão. O povo
do comércio olha admirado, porque aquele negrinho, baixinho corre tanto,
parecendo que nem sabe para onde vai.
Para na quitanda do seu
Chico, aquela da parede amarela tinta descascada, tem de tudo por lá, só não tem
luz, eita lugarzinho escuro.
- Seu Chico?
- Que foi menino?
- Minha mãe pediu pra
eu pegar um saco de macarrão, uma lata de extrato de tomate e um suco Maguari.
Aí ela falou que é pra anotar tudo no cadernin.
- Mas de novo? Escuta
aqui Murilim, fala lá pra sua mãe que essa é a última vez que eu vou fazer
fiado pro cêis, depois não quero nem saber.
- Tá bom seu Chico, mas
vê esses trem aí logo que eu não tenho nada com isso não. Vamo que se eu não
andar de pressa, ela ranca meu coro.
- Ê muleque, fala assim
de novo, que eu só não te vendo nada, que ainda te dou uma peia que vai fartar
couro nesse tiquinho de gente aí seu.
Pegou as coisas e jogou
pra cima do muleque, ele ligeiro que só, agarrou tudo no ar e aí correria
começou de novo. Mas mal saiu levantando poeira já topou com dona Carolina,
bola grande redonda de senhora. Usava um vestido laranja com umas bananas
estampadas, como que ele não viu aquilo ali?
Murilim caiu sentado no
asfalto, o choro principiou primeiro que a dor.
- HUMMMMNNNNNNN
BUUUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ.
Macarrão para um lado,
extrato de tomate para o outro, suco esparramado e criança empoeirada berrando
no meio e dona Carolina estava assustada, com uns olhões arregalados, morrendo
de vergonha dos outros na rua, sem saber o que fazer naquela situação.
- Ô menino, para com isso.
Agorinha vai começar a chegar gente aqui em volta e eu não quero isso. Para de
chorar que eu te dou um doce.
E cachorro rejeita
linguiça? Num pulo o menino já estava de pé, a vermelhidão dos olhos foi
substituída por um brilho inexplicável, parecia que ele já sentia o sabor do
doce pelos próprios olhos. A língua do moleque ficou invejosa, perdera sua
função.
- E que doce a senhora
vai me dar, dona Caroca?
- Toma esse trocado
aqui, vai ali de novo na quitanda e compra um pé de moleque pra você. E não me chama
de Caroca não, se não, no lugar do doce vou é te dar um safanão.
Nem o sol piscou e
Murilim já estava dentro da quitanda.
- Seu Chico! seu Chico!
seu Chico!
- Ô minha nossa senhora,
que que foi menino desinsofrido?
- Vê um pé de moleque
pra mim e dos mais gostosos que tiver.
Jogou então os trocados
no balcão e ficou esperando que nem gato quando espia passarinho de baixo da
árvore.
- Ara menino e onde foi
que você arrumou esse dinheiro pra comprar doce, até agorinha acabei de fazer
fiado pro cê e pra sua mãe.
- Uai seu Chico, o
senhor gosta é de dinheiro ou gosta é de conversar? Vê logo esse doce pra mim,
que minha barriga já tá é roncando de fome. Foi dona Caroca que me deu.
- Ô menino desaforado.
Êta veia besta, fica dando dinheiro pra esse muleque, depois que acostuma quero
ver o que ela vai fazer (falou essa última frase baixinho, que era para o
menino não ir fofocar para a senhora).
Pegou o doce e jogou no
moleque, dessa vez pegou em cheio na moleira dele, os reflexos não deram,
talvez a felicidade fosse tamanha que o deixou meio lerdo.
- Aiai seu Chico, faz
isso não que dói muito.
- Anda menino, vai
embora daqui que já não guento mais olhar pra essa cara feia sua.
Catou o doce e saiu em
disparada de novo. Era poeira, lambreca na boca, sorriso nos dentes, tudo
misturado na correria de volta para casa. Chegou em casa, o doce já tinha
acabado. A casa sem reboco, só chapiscada, só tinha uma entrada que era da
cozinha. A água no fogãozinho esmaltado branco de quatro bocas, soltava fumaça
que soltava, a mãe ali na beira, com as mãos escoradas nas cadeiras esperando o
menino chegar.
Murilim passou vazado
direto, chegou correndo, chinelo para o ar e pulo certeiro no sofá, era hora de
desenho na TV que ela gostava de dar gaitada.
- Murilo Candido de
Souza, cadê o macarrão e o extrato que eu pedi pra você comprar?
Menino preto ficou
branco, era gelo só dentro da barriga, tudo revirava ali por dentro. Lembrou
que quando foi comprar o doce, deixou tudo jogado na rua e esqueceu de pegar de
volta. O jeito era sair correndo para buscar, mas e se não estivesse mais lá. E
se algum mequetrefe na rua tivesse achado e nessas horas já estava com a pança
cheia? Ô vida triste, o vida danada pensou o menino, alegria de pobre, menino,
preto dura do tamanho que Murilim era.
Ele chegou arrastando
pé na cozinha, de cabeça baixa e com os braços e as mãos cruzadas nas costas,
nem sabia o que iria ser, só sabia que o coro ia arder.
- Mãe, eu me esqueci
das coisas, a senhora perdoa eu?
- COMO QUE ESQUECEU,
MENINO DESGRAÇADO! EU TE MANDEI LÁ SÓ PRA COMPRAR ESSES TREM. AGORA SEU PAI VAI
CHEGAR E O ALMOÇO NÃO VAI TA PRONTO. ELE VAI ME TORRAR A PACIÊNCIA, VOU FALAR
QUE A CULPA FOI SUA.
- Não mãe, não mãe,
conta pro pai não que ele vai me matar de tanto bater!
- Mas é isso que você
merece mesmo seu desgramento.
- Mãe, eu volto lá
rapidim e pego as coisas e volto mais depressa ainda.
- Então vai, some
daqui, se não, esquento seu lombo.
Agora, tudo era só
poeira, não existia nem mais menino, chegando ao local procurou para todo lado
as coisas e não achou nada. Era tristeza só, se voltasse pra casa tava lascado,
se demorasse muito tava lascado, se pedisse fiado na quitanda tava lascado,
queria cavar um buraco e de lá não sair nunca mais.
Murilim sentado na
calçada chorando sufocado com a cabeça entre as pernas, nisso passou um mendigo
mais manguaçado do que gambá, tentando equilibrar na sua corda bamba
imaginária.
- Ei menino, tá
chorando por causa de quê?
Sem resposta.
- O fi duma rapariga,
que que foi?
Sem resposta.
Não andou nem mais duas
quadras, quis beber e viu que sua cachaça tinha acabado. Parou, olhou para as
pessoas que passavam apressadas por ele na calçada, lembrou que tinha fome.