Olho pro lado, não há ninguém. Estou lá diante
daquele enorme muro ou muralha, tanto faz o conceito dessa merda, o que importa
é que estou lá. Parado há mais de meia hora, observando como se estivesse
olhando a mais bela musa do universo. Aquilo era branco como sal, naquele
horário doía as vistas. Trinta metros de altura? Claro que não, provavelmente
bem menos.
Olho pro lado, as pessoas estão se aglutinando a
minha volta. São pessoas como eu, pé rapados, todos hipnotizados pelo grande
muro branco. Eu também estou olhando novamente, sinto a presença deles crescer.
Aumentam numericamente em rápida proporção, são meus irmãos, companheiros.
Sinto a presença de todos, mas como dizia meu grande amigo: “quando notamos
mais a coisa do que as pessoas, é sinal de que a coisa tem mais importância
para nós”.
Minha voz sussurra.
O que acontece com a imensa dificuldade em articular
liberdade e disciplina? Barbudos, libertários do cotidiano ao mesmo tempo
líquidos, raros de presença e compromisso, ou se não, escassos. Outros, honram
com os horários, porém se portam como o grande irmão diante de nós.
Ouço todos os ruídos lá dentro. As máquinas
trabalham duro. Pelo tamanho, nota-se que ali não podia ser menor, não mesmo.
Dinossauros de ferro, engolem o que vem da terra e vomitam o futuro suor a ser
aspirado pelo rico homem. Pobre de nós que olhamos calados do outro lado desse
maldito muro. Nossas barrigas roncam, roncam de pobreza de espírito, roncam
porque não temos outra opção, roncam porque pedimos esmolas, roncam porque
sabemos que estamos lá, mas preferimos olhar para o maldito muro.
Falo normalmente.
Eis que faço um giro de 180. Observo o outro lado da
rua, recordo das cenas.
Não foi a primeira vez que senti essa falta, a falta
do conflito criativo. O coração tem batido poucas vezes. Por falta de escolha
acabava escolhendo as peles macias. Cheiros harmônicos. Femininos. O conflito
morava ai. Era desafiar qualquer padrão estabelecido. Qualquer convenção e
levar isso ao máximo.
No começo eram coisas pequenas e considerava tais
como grandiosas, tudo foi se intensificando, a taxa de pisar na merda só foi
crescendo. Como era bom, como era bom, a novidade, estranho pensar que a
novidade do passado soa com um sabor melhor do que a atual.
GRITO
Foi falta de um conflito declaradamente aberto com a
burguesia.
Do outro lado da rua trata-se de uma praça. Todos
estão felizes. Crianças brincam com seus balões multicoloridos. Os pais
sentados olham cautelosos elas brincarem. A qualquer momento acionam o botão e
a grade de ferro cai sobre os pequenos. Os cachorros fazem seus cocôs em forma
de sorvete. Há muito barulho ali do outro lado, sons de suposta felicidade. O
que eles têm que não estão hipnotizados pelo grande muro branco? São isentos de
tudo isso? Já fui um deles?
Minha voz sussurra novamente.
Os debates são mera reprodução de ficha técnica. A
questão israel-palestina está meramente esquecida nas auto-promoções do
cotidiano. São totalmente compreensíveis. Qualquer um sente o peso das várias
toneladas. O que não se compreende é como eles fazem isso de uma maneira tão
banal. O fundamentalismo pode reinar, vem de mãos dadas com o cavalo enxuto,
andam sobre o signo da novidade. O que será pior, a verdade nua e crua ou o turbilhão?
Agora já estou no meu ritmo novamente.
O muro continua lá indiferente a todos nós. Meu
desejo a transgressão é enorme. Até que um garoto joga o primeiro tomate. Uma
pequena mancha vermelha. Genial, realmente genial. Aplaudi ficando praticamente
sem fôlego. Outros tomates se seguiram. Mesmo pintando um pouco da paisagem,
era pouco diante da totalidade. O muro ainda era indiferente a todos nós.
COMEÇO A GRITAR NOVAMENTE.
As maquinas estão operando a todo vapor. Elas não
param. Terão descanso somente quando tudo for pelos ares. Isso jamais
acontecerá. As máquinas continuam trabalhando, arrancarão cada gota de suor que
restar da classe trabalhadora, e depois esta mesma classe, gastará toda fina
verde folha que lhe resta. Burros. Não sentem o que está por vir? Não depositem
seu sangue nisso. As máquinas estão a pleno vapor. Ignorantes dinossauros de
ferro.
Foda-se a questão do conflito criativo. Eu sei que
ele é realmente necessário. Uma hora vou romper com tudo. Morder a primeira
pele que me apresentarem, causar aquele extremo desconforto e só assim vou ter
o verdadeiro material. Transformarei em ouro. Isso me lembra o tempo das casas
de pouca luz. Causarei desconforto e toda ação que vier disso, será
alimentadora.
Agora cochicho novamente.
É mesmo difícil pensar no que fazer. A sensação de
impotência é muito grande. Sempre imaginei que fosse mais fácil, mas não é.
Somos o nosso próprio obstáculo. Queremos sempre representar os desejos
alheios, mas os nossos próprios impedem que tudo isso aconteça. As vezes sinto
saudade e tenho vontade de voltar para a alcateia, mas não é possível, não
duraria nem três segundos. Seis talvez.
Agora sim, tudo está normal.
Uma multidão está na rua. Todos parados. Todos
olhando para o grande muro. Eles escutam os mesmos sons que eu? Se sim, isso
pode nutrir alguma esperança em mim. Talvez notem que são eles que gritam lá
dentro. Gritam por toda exploração que sofrem. Não há risadas no topo, nem tão
pouco dó. Há sempre acumulo e mais acumulo, tudo isso se torna investimento. O
gado é tragado e cagado e assim sucessivamente.
Meu coração treme, fica na esperança de um coro
ecoar. O ressoar de milhares de vozes, poderia de fato fazer aquela estrutura
tremer. Seria significativo. Mas continuamos todos parados, o muro branco
realmente nos oprime. Estão tensos como eu?
GRITO, GRITO SEM PARAR.
- Oh, reles metais. Chegou o dia do acerto. Ajuste
de contas. Pagarão caro, por toda seiva extraída. Não existirá história sobre
vocês. No esquecimento se afogarão. Malditas seja, criação nossa, porém a
perversão foi evoluindo em vocês mesmas. Que soem trompetes, anunciando
destruição, cairão em fogo. Lava voltarão a ser e como nova matéria orgânica,
terão realmente alguma utilidade.
O sussurro agora treme.
Estou ficando cansado. É realmente difícil continuar
em pé. As reivindicações estão aí em bom som. Se elas fossem executadas, as
mudanças seriam tão drásticas que abalariam o sistema. Duvido muito, mas já
seria interessante notar o fim de várias coisas. As mulheres com certeza,
ganhariam bastante com tudo isso. O corpo feminino grita muito mais que o meu.
E mesmo assim o sussurro ainda treme.
Será ele realmente um líder? Não duvido que a
intenção seja boa, mas até onde isso não é o macho alfa reprimido. Mesmo nas
companheiras o caso se aplica. Falo mais mal de nós do que deles. Mas o que
dizer deles, já sabemos que estralam o chicote e a língua goza de sabor perante
a isso. Vejo-os sempre como porcos de cartolas.
A dita normalidade começa a retornar.
A coisa está ficando apertada. Uma certa pressão
começa a ser feita contra o muro. Mesmo que involuntária, aquilo ali está
acontecendo. As maquinas estão ficando preocupadas, sei que elas estão ligadas
com as cabeças. Mas afinal o que está sendo construindo ali? Para os
desinformados, trata-se da fábrica dos sonhos, em que João, assim como eu você,
dificilmente colocará os pés no tapete dos desejos.
Mas não são essas nossas verdadeiras aspirações.
Eles tentam dizer que sim, mas jamais vamos acreditar. Jamais. Estamos ali como
cachorros moscas de açougue. Aguardando simplesmente o momento certo para o
bote. Será fatal. Não teremos dó. Cairão como gigantescos prédios implodidos.
Eis que as escrituras são grafadas no muro. Bem
ditos sejam aqueles que fizeram isso. Como já disse, meus irmãos.
Frase 1: Não seremos mais enganados, por qualquer
propaganda televisiva ou simples manipulação na internet.
Frase 2: Sabemos da desigualdade econômica, sabemos
o nome disso: LUTA DE CLASSES.
Frase 3: estamos resolvendo nossas diferenças. Toda
ideologia progressista agora será utilizada como um instrumento a nosso favor.
Frase 4: sabemos também dos diferentes eixos
emancipatórios. Não insistam. Não haverá racismo, machismo, homofobia,
degradação ao meio ambiente. O grito dos excluídos fará parte do nosso coro.
E as frases continuaram. O muro agora estava
colorido, de preto. Com toda pressão e ataques ferrenhos a sua estrutura, o
gigante branco começou a tremer. Eu, já estava em prantos e ao mesmo tempo
urrava junto com todos outros. Sentia que algo a mais estava para se revelar.
Para além do mero grito das indiferentes máquinas. Meus irmãos tinham o mesmo
pressentimento que eu?
Um último sussurro.
Por quantas vezes sou tentado a me jogar no abismo?
Entrar na dita normalidade do “revolucionário”? Ser um dito quadro, obter o
sexo que vem com isso e ter os méritos que se pode gozar com a disciplina e
criatividade que cabem nesse espaço? Poderia. Que as coisas fiquem resolvidas.
Sei que eles são tão bons quanto eu e tão ruins também. Tomara que estejam
certos. Eles e todos outros.
Os blocos começam a cair. Enfim os blocos começam a
cair. Pouco a pouco as maquinas são reveladas assustadas. Quem gritará por
elas, quem as ajudará? Nós que servimos de alimento, com certeza não. A medida
em que ele cai, os sorrisos florescem. Agora começamos a ter certeza. Não era o
muro que escondia as maquinas de nossa exploração. Nem tão pouco os burgueses
que nem ali se escondiam. Sim, é obvio que o muro dizia respeito entre os
burgueses e nós. Mas esse muro estava mais do nosso lado, calcado em nossas
dificuldades. Quando a última criança com seu punho raquítico derrubou o último
tijolo, entendemos que era o muro que nos separava de todas as nossas
aspirações e sonhos. Entendemos que transpor é mera vontade materializada,
fruto do suor que escorre lado a lado.
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