segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pequeno Assovio

Me sinto pequeno, diante de cada harmonia que a princípio soa simples, mas a cima de tudo soa sincera. É como se todas as minhas tentativas fossem meros falsetes, com extremo esforço posso atingir um purismo técnico, porém vazio de criatividade. No momento em que penso isso, caminho sobre a praia. Minhas calças jeans e minha camisa vermelho sangue chama atenção no meio de tantos corpos seminus.
Paro. Olho para o mar e vejo as linhas poéticas que surgem de cada onda. Ele zomba de mim. O mar zomba de mim. Brincalhão como é, não poderia fazer algo diferente naquele momento.
- Oi.
Olho pro lado e lá está ela. Pequena menina branquinha, singular em cada gesto, mulher atraente aos olhos comuns, muito atraente.
- Nunca pensei que fosse te ver aqui.
- Nem eu.
- Como assim?
- Só quero dizer, que nunca me imagino caminhando na praia. Sei lá, é estranho pra mim. Mas tudo ultimamente anda tão estranho, que agora já não faz diferença.
Ela sorri. Ri. Sua risada é um pouco mais disfarçada do que a do mar. Mas aquilo me soa como um sorriso. Vejo os dentes e a boca, tudo fica em silencio naquele momento. Quantas vezes eu beijei aquela boca? Era salgada como o mar? Talvez só no final. Ela me pergunta:
- Mas afinal quais são suas crises atuais?
- Inutilidade poética em pleno auge criativo.
Belos sons de gargalhada. Maravilhosos sons de gargalhada.
- Como assim? O que isso quer dizer?
- Não sei, é essa a questão. Não quer dizer que eu não tenha feito nada, mas tudo soa como inútil. Para poesia, pro nosso mundo até que tem algum valor.
- Você sabe que não vejo sentido nenhum nessa conversa.
- Sério? Pensava que não. Qual foi a última vez que a gente se viu?
- Sei lá, faz muito tempo. Você tá mais maluco do que antes, acho que foi por isso que a gente não deu certo.
- A gente não deu certo pela utilidade que eu almejava naquela época. E agora que tudo finalmente se torna inútil, eu não vejo sentido.
- Meu Deus, as vezes isso cansa sabia? Você nunca pensou em relaxar, em ser normal?
- Normal? Corta essa vai. Você sabe o tanto que isso é furado.
- Sei, mas quem sabe dizer essas coisas não te ajuda a voltar pro eixo.
- Eixo, eixo, eixo, eixo, exu, exu.
- Acho que já vou indo.
- Não espera, senta aqui do meu lado.
Ela usava biquíni, o loiro do cabelo refletia bem o sol. A pele tinha um contraste bom com aquilo e eu despenteado como sempre sentia o suor escorrer, grudento, simplesmente grudento. Mesmo assim me atrevia a estar ali, ao seu lado, na ousadia da troca de presenças.
Sentamos. Foi bom. Realmente bom saber que existia alguém ali do meu lado, olhando o mar zombeteiro e que a chacotas do espelho já não seriam secretas. O que ela pensava, o que ela pensava dele, o que pensava de mim? O que eu penso sobre ela? Quem dera fosse a única, mas foram tantas que minha esquisitice teimou em afastar. Se afasto tanto porque será que atraio? Consiste numa teoria de polos opostos e complementares?
- Você não tá com calor com essa roupa?
- Sim.
Olho pra ela bem nos olhos. Azuis, porém bastante sérios.
- Pra você o que é conversar comigo nesse exato momento?
- Estranho, como sempre foi.
- Entendo.
- Entende nada, finge que entende.
Eis o meu primeiro sorriso do dia. Ela gosta, gostou, sei que gostou. Maria Flor é o nome dela. Nos conhecemos a dois anos atrás, o nosso relacionamento durou quatro meses e vinte e sete dias. Poderia considerar como cinco meses, mas prefiro ser exato. Na verdade o seu nome é Marcia ou Lidia, não sei, não me lembro mais. Mas esses são os nomes mais recorrentes na minha cabeça, provavelmente é algum deles.
A atração carnal era ponto forte, mas nunca se tratou disso. Ela cantava. Nem a canção materna era tão reconfortante como a voz dela. Talvez pela ausência materna considerasse isso. Postura de mãe não tinha. Era daquelas eternas crianças que aprende as brincadeiras da vida adulta e sabe levar muito bem desse jeito. Fez muito bem para mim, como todas de uma certa maneira fazem. A minha boa influência como sempre foi somente no início, depois o caos.
Gostava de acariciar os cabelos do meu peito, era fanática nisso. Eu tinha tara em seus pés. Depois que terminamos cheguei a sonhar algumas vezes, somente com eles. Desperto novamente com frases perdidas.
- Sabe o que é? Quando ti vi, pensei em passar reto. Percebi que você estava distraído e provavelmente nem ia me ver. Mas não sei, alguma coisa me atraiu pra você, magnetismo, e eu bancando de pedaço de metal. Ai que raiva de falar essas coisas.
- Relaxa.
- Enfim, já deu pra notar mais ou menos como anda sua vida, mas a minha também não tá boa.
- Eu nunca disse que minha vida estava ruim.
- Ai, viu? É por isso que eu te odeio.
- Eu sei e acho que você tem razão.
- E por isso também.
Tapei a boca dela com minha mão. Os olhos refletiam indignação, mas lá no fundo agradeciam, pois sabiam que aquela forma de comunicação a muito tempo já estava falida. Faliu para humanidade toda. O gesto de carinho nos cabelos loiros veio como sucessão, a mão ainda continuava na boca, os olhos me diziam tudo o que precisava. Pediam para não fazer aquilo, mas denunciavam a entrega. Enfim ambos cederam, ela deitou no meu colo e eu continuei com o carinho nos cabelos.
Queria perguntar para o mar agora, o que ele achava de tudo isso. Será que ainda achava engraçado. Eu ao menos, sentia que aquele gesto não fora um falsete, suspeitava que poderia haver algo de poético ali. Cabe ao julgamento de cada um, ao meu, ao seu, ao do mar e ao dela é claro.
Ficamos ali durante muito tempo, ela no meu colo e eu lhe fazendo carinho. Por aquilo eu já conseguia compreender porque sua vida estava ruim. Estava ruim, pelo mesmo motivo que a vida de todo mundo está. Pela impossibilidade de uma nova forma de comunicação que nutra corpo e mente e que seja para todos. Não havia o que fazer, a não ser dizer que continuasse tentando.
Ela sabia também que eu continuaria flutuando em minha orbita especifica, mas que aquilo ainda poderia ter uma utilidade para todos nós. Uma autentica utilidade poética.
Passado muito tempo, nos levantamos. Para não quebrar o protocolo, disse um pedido de desculpas com o olhar. Nunca terei a certeza de qual foi a resposta. Ela simplesmente se virou e foi embora, decidida sobre alguma coisa. Alguma coisa realmente importante.

Eu do meu lado, voltei a caminhar na praia e ainda continuei a me sentir pequeno. Só que as notas já estavam todas embaralhadas em minha cabeça. Arrisquei um assovio e acreditei que deu certo. Fui emendando os fraseados e não parei mais. Continuo até hoje e compartilho sempre que posso.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Queria pular da ponte

Mário caminhava sozinho pela rua, seu estômago doía e sua cabeça estava um pouco zonza. Mesmo assim continuava caminhando. Tinha acabado de sair da casa de sua amiga, dormira lá devido a toda bebedeira da noite passada e nem lembrava direito quando apagou.
É fato, que gostava de caminhar, observar a arquitetura das casas, andar pelo velho centro. E observando aquelas casas sentia uma grande tristeza ao compará-las com a ausência de arte que possuíam as construções contemporâneas. Todo aquele contraste era para Mário o paradigma do mundo contemporâneo: ausência de arte, ausência de criação.
Quando estava caminhando sobre o viaduto, parou e olhou para baixo, observando a grande avenida que se estendia ali. Era como um rio tortuoso, não pelo excesso de curvas, mas sim pelo acesso de carros e parafernália tecnológica. Teve a consciência que as pessoas na maioria dos casos estão fechadas. Seja por cabines de carros, por quatro paredes, por um capacete ou simplesmente pelas roupas que vestem.
“Mas tudo isso, não seria por uma questão de segurança?”, pensou. Suspeitava que não. Suspeitava que o enclausuramento em que todos se encontravam, era algo mais. Simples ausência do outro, na verdade, total isolamento, de si para si mesmo, bolhas de concreto que nunca iriam estourar.
Era ele um desses? O simples fato de estar na rua, dava-lhe esperanças. Onde estão os outros caminhantes? Era domingo, na hora do almoço, estavam em casa, apreciando a quente refeição, descongelamento do trabalho alheio? Não sabia, o seu estomago ruía, num grito pequeno, reclamando da noite passada e implorando pelo dia seguinte. Mas Mário sabia jejuar.
Sentiu uma pequena vontade de pular, mas se arrebentar no chão como na canção era pra ele muito clichê, o que justamente rodava na sua cabeça era essa maldita pergunta de como criar o novo, no tempo presente. Parecia que tudo estava posto a mesa, tudo absorvido, todas as cartas estavam dadas, éramos um eterno cover dos inconscientes do passado.
Eis que uma garota passou e ele perguntou:
- Moça, você sabe quantas horas falta para que algo realmente novo e autêntico aconteça?
- Quê? Você tá maluco cara?
- Quase moça. Estou a ponto de pular dessa ponte, se algo realmente novo não acontecer. Uma coisa sabe, como um arpão a perfurar o mundo, mergulhar de cabeça, um tiro na partitura, um buraco de nota em cima da harmonia da vida.
- O que você tá falando? Que monte de merda é essa? Você é muito doido mesmo. Como você chama?
- HAHAHA, eu é que sou maluco né? Você fala tudo isso sobre mim e ainda pergunta meu nome. Meu nome é Mário e o seu?
- Patrícia.
Nesse momento os dois pararam a conversa e se voltaram para observar a avenida lá em baixo e o passar dos carros. Se fotografados por trás dariam a seguinte imagem: o rapaz estava a esquerda da imagem. Os dois estavam pertos, separados por uma distancia de vinte centímetros e ele era dez centímetros mais alto do que ela. O cabelo dela estava preso, deixando cair um rabo de cavalo. No vão entre os dois, subia um enorme poste de concreto na cor cinza. O parapeito do viaduto dava na cintura dele e na barriga dela. Lá no fundo da fotografia, via-se a avenida com seus carros e em cima pegando quase todo plano de fundo, o céu de um azul bem forte e algumas nuvens desmanchadas em aquarela. Na borda da imagem, algumas grandes árvores de copa verde e arredondadas subiam e seguiam margeando a avenida.
Enfim, ela suspirou e disse:
- Como é possível, no superficial, eu olhava pra você e escutava as coisas que estava dizendo e achava tudo um grande absurdo. Mas no fundo, as palavras entravam em mim e dançavam, gritando também, despertando todos os meus sentimentos para algo que eles queriam apreciar.
- Entendo, estamos acostumados com o fluxo linear das coisas e não com algo intricado e esparso. Mas isso já foi quebrado a muito tempo atrás, mas toda essa dispersão foi engolida e deu no que deu, deu nessa avenida com suas cabines de carros a enclausurar as pessoas.
- O que você quer dizer com isso? Que todo o fluxo disperso levou a nossa ruína atual?
- Não, acho que não. Mas penso que na liberdade professada antes, faltou algo. Algo da ortodoxia, da esquerda arcaica. Peneirar a importância coletiva, descartando o sabor opressor.
- Entendo, mas como fazer esse casamento? Parece impossível.
- Pois é, por isso estou parado, por isso te parei e lhe fiz aquela pergunta. Sorte que você parou e alguma coisa aconteceu. Quer almoçar no parque?
- No parque? Então não vai ser um almoço e sim um piquenique. Afinal, no parque não tem como cozinhar.
- Não tem? E se fizéssemos uma fogueira, com qualquer recipiente poderíamos já fazer algo.
- Seríamos presos.
- Pois é, é disso que estou falando, está todo mundo fechado, preso dentro de alguma coisa, mesmo dentro de um parque.
- É, o foda é que romper com as barreiras dessa prisão tem suas consequências.
- Vamos simplesmente caminhar então, que tal? Sua barriga ainda aguenta? A minha sim, sou bom em jejuar.
- Pode ser, hoje finalmente tomei um bom café da manhã.
Começaram a caminhar e terminaram de cruzar o viaduto. Logo em seguida havia uma grande subida. Encararam ela. Não diziam nada, apenas caminhando um ao lado do outro, por alguns momentos seus braços acabavam se roçando e eles sentiam o calor da pele de ambos. Era aquilo a forma de comunicação entre eles, o toque dos braços, o som dos passos dos dois se misturando a medida que o caminho ia se desenvolvendo. A ausência de palavras dava tempo para que eles observassem em volta, toda a arquitetura, a vegetação, os animais, as raras pessoas que ali apareciam, o som que tudo isso produzia.  Nesse observar, quando decidiam olhar no lado oposto enxergavam um ao outro, trocavam olhares e continuavam caminhando, com um bem estar crescente.
Quando terminaram a subida, estavam ofegantes e suados. Ele parou de frente para ela, colocou suas mãos em seus ombros e lhe assoprou o rosto. A brisa daquele sopro dançava com os sentidos dela mais do que as palavras que ele havia proferido quando se conheceram. A resposta da moça foi um largo sorriso, absorvido fraternamente pelo olhar do rapaz.
- E agora?
- Não sei, estou cansada e agora sim com fome.
- Eu na verdade, sempre estive, mas sou bom em jejuar, mas comer agora realmente seria bom. O que comer nesses tempos atuais?
- Melhor ainda é pensar em o que digerir nesses tempos atuais.
- E também há a questão de o que daremos a luz depois. Parir, sempre me parece um processo doloroso.
- Com certeza, toda criação autentica exige dor, mas por tudo que conversamos já, tenho plena certeza que estamos sentido essa dor. A dor da individualização, da bolha, que por mais que entre em contato com outras, nunca se rompe.
- Tenho fome, dê-me de comer.
Olharam novamente uma para o outro e uniram-se num único beijo. Foi necessário morder, ter sangue e dor. A saliva e o simples contato entre as línguas era muito suave para saciar aquela fome. Sabiam que todo aquele processo não se passava somente na boca, esta era a porta de entrada para o acesso entre eles. Para a total ruptura do isolamento.
Quando terminaram, olharam para o céu, com os olhos mareados por lágrimas. Já não havia mais nuvens. Com passar do tempo, pequenos círculos começaram a aparecer na visão de ambos, algo ali se revelava.