Mário caminhava sozinho
pela rua, seu estômago doía e sua cabeça estava um pouco zonza. Mesmo assim
continuava caminhando. Tinha acabado de sair da casa de sua amiga, dormira lá
devido a toda bebedeira da noite passada e nem lembrava direito quando apagou.
É fato, que gostava de
caminhar, observar a arquitetura das casas, andar pelo velho centro. E observando aquelas casas sentia uma grande tristeza ao compará-las com a
ausência de arte que possuíam as construções contemporâneas. Todo aquele
contraste era para Mário o paradigma do mundo contemporâneo: ausência de arte,
ausência de criação.
Quando estava
caminhando sobre o viaduto, parou e olhou para baixo, observando a grande
avenida que se estendia ali. Era como um rio tortuoso, não pelo excesso de
curvas, mas sim pelo acesso de carros e parafernália tecnológica. Teve a
consciência que as pessoas na maioria dos casos estão fechadas. Seja por
cabines de carros, por quatro paredes, por um capacete ou simplesmente pelas
roupas que vestem.
“Mas tudo isso, não
seria por uma questão de segurança?”, pensou. Suspeitava que não. Suspeitava
que o enclausuramento em que todos se encontravam, era algo mais. Simples
ausência do outro, na verdade, total isolamento, de si para si mesmo, bolhas de
concreto que nunca iriam estourar.
Era ele um desses? O
simples fato de estar na rua, dava-lhe esperanças. Onde estão os outros
caminhantes? Era domingo, na hora do almoço, estavam em casa, apreciando a
quente refeição, descongelamento do trabalho alheio? Não sabia, o seu estomago
ruía, num grito pequeno, reclamando da noite passada e implorando pelo dia
seguinte. Mas Mário sabia jejuar.
Sentiu uma pequena
vontade de pular, mas se arrebentar no chão como na canção era pra ele muito
clichê, o que justamente rodava na sua cabeça era essa maldita pergunta de como
criar o novo, no tempo presente. Parecia que tudo estava posto a mesa, tudo
absorvido, todas as cartas estavam dadas, éramos um eterno cover dos
inconscientes do passado.
Eis que uma garota
passou e ele perguntou:
- Moça, você sabe
quantas horas falta para que algo realmente novo e autêntico aconteça?
- Quê? Você tá maluco
cara?
- Quase moça. Estou a
ponto de pular dessa ponte, se algo realmente novo não acontecer. Uma coisa
sabe, como um arpão a perfurar o mundo, mergulhar de cabeça, um tiro na
partitura, um buraco de nota em cima da harmonia da vida.
- O que você tá
falando? Que monte de merda é essa? Você é muito doido mesmo. Como você chama?
- HAHAHA, eu é que sou
maluco né? Você fala tudo isso sobre mim e ainda pergunta meu nome. Meu nome é
Mário e o seu?
- Patrícia.
Nesse momento os dois
pararam a conversa e se voltaram para observar a avenida lá em baixo e o passar
dos carros. Se fotografados por trás dariam a seguinte imagem: o rapaz estava a
esquerda da imagem. Os dois estavam pertos, separados por uma distancia de
vinte centímetros e ele era dez centímetros mais alto do que ela. O cabelo dela
estava preso, deixando cair um rabo de cavalo. No vão entre os dois, subia um
enorme poste de concreto na cor cinza. O parapeito do viaduto dava na cintura
dele e na barriga dela. Lá no fundo da fotografia, via-se a avenida com seus
carros e em cima pegando quase todo plano de fundo, o céu de um azul bem forte
e algumas nuvens desmanchadas em aquarela. Na borda da imagem, algumas grandes
árvores de copa verde e arredondadas subiam e seguiam margeando a avenida.
Enfim, ela suspirou e
disse:
- Como é possível, no
superficial, eu olhava pra você e escutava as coisas que estava dizendo e
achava tudo um grande absurdo. Mas no fundo, as palavras entravam em mim e
dançavam, gritando também, despertando todos os meus sentimentos para algo que
eles queriam apreciar.
- Entendo, estamos
acostumados com o fluxo linear das coisas e não com algo intricado e esparso.
Mas isso já foi quebrado a muito tempo atrás, mas toda essa dispersão foi
engolida e deu no que deu, deu nessa avenida com suas cabines de carros a
enclausurar as pessoas.
- O que você quer dizer
com isso? Que todo o fluxo disperso levou a nossa ruína atual?
- Não, acho que não. Mas
penso que na liberdade professada antes, faltou algo. Algo da ortodoxia, da
esquerda arcaica. Peneirar a importância coletiva, descartando o sabor
opressor.
- Entendo, mas como
fazer esse casamento? Parece impossível.
- Pois é, por isso
estou parado, por isso te parei e lhe fiz aquela pergunta. Sorte que você parou
e alguma coisa aconteceu. Quer almoçar no parque?
- No parque? Então não
vai ser um almoço e sim um piquenique. Afinal, no parque não tem como cozinhar.
- Não tem? E se
fizéssemos uma fogueira, com qualquer recipiente poderíamos já fazer algo.
- Seríamos presos.
- Pois é, é disso que estou
falando, está todo mundo fechado, preso dentro de alguma coisa, mesmo dentro de
um parque.
- É, o foda é que
romper com as barreiras dessa prisão tem suas consequências.
- Vamos simplesmente
caminhar então, que tal? Sua barriga ainda aguenta? A minha sim, sou bom em
jejuar.
- Pode ser, hoje
finalmente tomei um bom café da manhã.
Começaram a caminhar e
terminaram de cruzar o viaduto. Logo em seguida havia uma grande subida.
Encararam ela. Não diziam nada, apenas caminhando um ao lado do outro, por alguns
momentos seus braços acabavam se roçando e eles sentiam o calor da pele de
ambos. Era aquilo a forma de comunicação entre eles, o toque dos braços, o som
dos passos dos dois se misturando a medida que o caminho ia se desenvolvendo. A
ausência de palavras dava tempo para que eles observassem em volta, toda a
arquitetura, a vegetação, os animais, as raras pessoas que ali apareciam, o som
que tudo isso produzia. Nesse observar,
quando decidiam olhar no lado oposto enxergavam um ao outro, trocavam olhares e
continuavam caminhando, com um bem estar crescente.
Quando terminaram a
subida, estavam ofegantes e suados. Ele parou de frente para ela, colocou suas
mãos em seus ombros e lhe assoprou o rosto. A brisa daquele sopro dançava com
os sentidos dela mais do que as palavras que ele havia proferido quando se
conheceram. A resposta da moça foi um largo sorriso, absorvido fraternamente
pelo olhar do rapaz.
- E agora?
- Não sei, estou
cansada e agora sim com fome.
- Eu na verdade, sempre
estive, mas sou bom em jejuar, mas comer agora realmente seria bom. O que comer
nesses tempos atuais?
- Melhor ainda é pensar
em o que digerir nesses tempos atuais.
- E também há a questão
de o que daremos a luz depois. Parir, sempre me parece um processo doloroso.
- Com certeza, toda
criação autentica exige dor, mas por tudo que conversamos já, tenho plena
certeza que estamos sentido essa dor. A dor da individualização, da bolha, que
por mais que entre em contato com outras, nunca se rompe.
- Tenho fome, dê-me de
comer.
Olharam novamente uma
para o outro e uniram-se num único beijo. Foi necessário morder, ter sangue e dor.
A saliva e o simples contato entre as línguas era muito suave para saciar
aquela fome. Sabiam que todo aquele processo não se passava somente na boca,
esta era a porta de entrada para o acesso entre eles. Para a total ruptura do
isolamento.
Quando terminaram,
olharam para o céu, com os olhos mareados por lágrimas. Já não havia mais
nuvens. Com passar do tempo, pequenos círculos começaram a aparecer na visão de
ambos, algo ali se revelava.
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