segunda-feira, 31 de março de 2014

O vômito

Quando João Paulo olhou no celular batiam exatamente sete e trinta e cinco da manhã, o ônibus passava por uma rua qualquer da periferia da cidade. João guardou o celular no bolso, apoiou o cotovelo na janela do ônibus e começou a cochilar. Toda vez que o veículo caía em um buraco, o rapaz era arremessado por milésimos de segundos ao ar e retornava ao seu acento, nesses momentos acordava rapidamente e logo voltava a cochilar.
Trabalhava de pedreiro numa obra, era uma pena que o ônibus rodasse tanto antes de chegar ao seu destino e ao mesmo tempo era uma benção, pois ele aproveitava pra dormir um pouco mais. A carcaça de lata ia praticamente vazia, sempre os mesmos passageiros e o cobrador com o motorista fazendo suas piadas malucas. João já conhecia bem todos ali, apesar de nunca ter conversado com eles.
Ficava sempre na sua, nunca puxava assunto, sentava em um lado do ônibus que com o tempo aprendeu que era o que menos batia sol durante todo o trajeto. Não gostava muito do sol. Quando caminhava, buscava sempre andar pela sombra. Um verdadeiro vampiro, se pudesse, viveria somente à noite. Um vampiro forçado a se expor a luz do dia. Tudo isso só para conseguir o seu bendito sanguinho, o seu alimento, o salário no fim do mês.
De repente começou a sentir um cheiro azedo, nem todos os buracos do mundo que o ônibus poderia cair faria o acordar daquele jeito. Pensou: “que porra é essa?”. Acordando e olhando em volta, viu que perto da porta de saída mais a frente, num banco do lado direito, o chão estava coberto por um líquido pastoso e marrom. Quando pensou em descobrir a origem daquilo visualizou no banco que a mulher ainda estava vomitando, mas já estava no estágio final. Saía da boca dela agora apenas um fio transparente que João nem conseguia imaginar no que consistia aquilo. Em outro banco, sentada atrás, uma senhora tentava acalmá-la.
- Calma minha filha, já tá passando, tá. Agorinha a gente desce.
- Eu falei pro motorista que eu tava passando mal e ele não quis parar. Eu não queria ter feito isso. – Seus olhos estavam vermelhos e lacrimejavam, provavelmente estava com muita vergonha.
Os poucos passageiros que estavam ali perto começaram todos a ir para o fundo do ônibus. Muitos queriam descer naquele momento, puxaram imediatamente a cordinha como se estivessem sufocando. João foi o único que continuou parado no seu lugar, ainda tentando esquecer aquele cheiro e voltar para o seu cochilo. Olhou para o cobrador e percebeu que o cara se sensibilizava com todo o drama daquela mulher, mas que de certa maneira estava impossibilitado de fazer qualquer coisa, ao menos deveria ser o que o cobrador pensava naquele momento.
João então abriu um pouco da sua janela. Não costumava deixa-la fechada, mas aquele dia estava um pouco mais frio do que os outros. Não conseguiu voltar a cochilar, acabou observando aquela cena mais uma vez. A poça de vômito agora estava um pouco menos densa, um líquido de cor marrom claro já tinha se espalhado mais pelo chão do veículo e no centro da poça observou pequenos pedaços, provavelmente de carne que a mulher tinha comido.
“Será que ela precisa de ajuda? Acho que não, a senhora ali já tá ajudando ela, logo logo elas devem descer. Mas será que essa merda toda vai ficar aqui até quando? E se alguém escorregar em tudo isso aí? A coisa vai ficar pior ainda, provavelmente vamos ter vômito misturado a sangue”, continuava João, refletindo sobre o que estava acontecendo.
O ônibus parou em dois pontos, até que no terceiro as duas mulheres desceram, ele observou que a do vômito estava grávida. “Humn, então não foi por causa da carne picadinha estragada”, agora tudo fazia sentido em sua cabeça. Mais dois pontos pra frente era sua hora de descer.
Na porta da construção percebeu que mais uma vez foi o primeiro a chegar, gostava de fazer isso, geralmente escorava em um canto qualquer e ficava cochilando, quando os seus colegas barulhentos chegavam, dava um salto e começava a pegar no batente. Sempre perguntava para o mestre de obras o que tinha que ser feito naquele dia e logo em seguida já metia a mão na massa. Não conversava muito no serviço também, só o básico para que as coisas do trabalho funcionassem. Seus colegas faziam piadas e xingavam uns aos outros o dia inteiro, quando conversavam sobre alguma coisa sempre era sobre mulheres, até o futebol já estava ficando de lado, talvez os times já não estivessem mandando tão bem assim. Havia raras exceções ali, com esses, João até trocava uma palavra ou outra, geralmente eram os mais velhos, já tinham filhos, gostavam também de falar sobre mulheres, mas pareciam estar muito menos no cio do que os outros.
- Que merda aquela coisa toda com o vômito – disse João antes de achar algum lugar para escorar.
Toda essa coisa, fez com que repentinamente, percebesse que esquecera a sua marmita de almoço, agora estava com o estômago embrulhado e no futuro seria adicionada a isso sua fome.
“Porra! Vou ter que comer naquele restaurantizinho.” – Meteu a mão no bolso para procurar algum dinheiro e percebeu que estava zerado. Esqueceu-se do seu cochilo que tradicionalmente tirava na obra e ficou andando de um lado para o outro, pensando no que fazer e ainda sentindo um pouco de enjoo.
- Vou pedir dinheiro para algum dos caras aqui, é isso. Porra, mas eles são chatos pra caramba, vão ficar me enchendo o saco o dia inteiro. Vou pedir pra um dos mais velhos, com certeza é melhor assim. Mas merda, os caras são tão duros quanto eu. Pelo visto, só me resta o mestre de obras, mas se pedir grana pra aquele babaca, isso vai fazer com que ele se sinta superior a mim, eu é que não vou dar mole pra aquele cara.
Enquanto João pensava sobre essas questões, o resto do pessoal começou a chegar à obra. Todos o cumprimentavam e ele nem respondia, ficava parado e continuava a refletir. Ninguém gostava muito dele mesmo, então para eles aquilo não fazia muita diferença. O único que gostava um pouco mais era o mestre de obras, por João não conversar muito, o trabalho que fazia geralmente ficava muito bom.
O rapaz se achava mais inteligente do que todos ali. Cursou somente até o ensino médio, a maioria dos seus colegas também, alguns nem chegaram a isso. Mas João, talvez tenha tido uma infância diferente dos demais. Muitos deles nunca conheceram o pai ou se conheceram já tinham esquecido a figura paterna. João lembrava-se muito bem do pai, queria nunca ter o conhecido, mas a memória do velho não saía da sua cabeça.
Infelizmente uma clássica figura da nossa sociedade, o velho era alcoólatra e batia tanto na esposa como no filho. João era filho único, então sua mãe era a única com quem dividia as surras. Apanhavam geralmente porque discordavam de pequenas questões do pai, quando este estava embriagado e discordância o desgraçado não admitia. Às vezes, apanhavam sem nenhum motivo mesmo, provavelmente alguma coisa havia o irritado fora de casa e ele descontava nos dois, principalmente quando brigava com alguma de suas putas ou era demitido de algum emprego. À medida que o garoto foi crescendo, passou a focar as surras mais nele. A mãe gritava e chorava demais e aquilo o irritava mais ainda, já João começou a ganhar resistência e de certa maneira começou até a criar uma indiferença à violência constante que sofria, apanhava calado e muitas vezes nem derramava uma lágrima.
Tudo isso, com certeza endureceu bastante o menino, levava essa experiência de casa pra todo lugar que fosse, principalmente na escola. Achava que toda a humanidade era um monstro como o seu pai, em sua cabeça a única que compartilhava de seus males era a mãe, mas começava a nutrir também certa raiva por ela, por não entender como aguentava ficar com aquele babaca. Isso contribuía para que odiasse a todos em sua volta, na escola não conversava com ninguém, achava as aulas chatas e os professores uns idiotas.
No colegial a única disciplina que gostava era história, ficava fascinado com civilizações antigas e todos os mitos que carregavam, aqueles mundos distantes começavam a se construir como um refúgio para João. Sempre tirava nota máxima na disciplina e questionava frequentemente os professores sobre leituras extras e lia todas que eram passadas. Alguns professores de história até se sentiam importunados pelo garoto, pois começou a fazer questionamentos tão complexos e muitas vezes, corrigia seus mestres na frente da turma toda. Aquilo deixava os professores bastante irritados. Colocavam-no para fazer resumos gigantescos e João não entendia aquilo e muito menos encarava como um castigo, entregava todos, alguns até antes do prazo.
Quando chegou ao ensino médio, descobriu a literatura. Aquilo foi incrível para ele, não se tratava apenas de histórias distantes que já aconteceram, mas sim de questões imaginárias e subjetivas, personalidades complexas que João não encontrava no seu dia a dia. Finalmente encontrou com quem dialogar, sobre todos os seus anseios e angústias. Todos os livros que os professores passavam ele lia, não ficava só nos resumos como seus colegas, por muitas vezes deixava de fazer lições de outras disciplinas só para conseguir terminar de ler os livros de literatura.
As descrições detalhadas que os autores faziam e o realismo que as obras possuíam, fazia com que João assumisse para si todas as teorias dos personagens que conhecia. Em um mês pensava de acordo com as loucuras de Quincas Borbas, num outro sentia todas as aflições de Emma Bovary, logo em seguida sua personalidade já buscava manifestar toda a complexidade de Raskólnikov.
Suas redações eram as melhores, porém as mais melancólicas e pessimistas. Alguns professores de literatura chegaram a ficar preocupados com o João, pois com todo o brilhantismo que o garoto escrevia, aquele conteúdo poderia refletir sérios problemas. O fato é que ele teve dificuldades para terminar o ensino médio, apesar das boas notas em história e literatura, saía mal em todas as outras matérias, provavelmente só passou nas disciplinas porque os outros professores já não suportavam mais olhar para a cara dele.
Sabia muito bem que não conseguiria passar no vestibular de uma universidade pública, sempre odiou toda a decoreba que era necessário para isso. Sabia mais ainda que não tinha grana para pagar uma universidade particular, até porque, quando fez dezoito anos seu pai o chutou para fora de casa. Só restava a ele uma única alternativa: arrumar um emprego qualquer para poder sobreviver. Era uma realidade que a maioria da juventude do país enfrentava, mas João se sentia diferente, provavelmente por todos os livros que já tinha lido. E de fato era, mesmo que não tivesse nada de especial, dentro de si, sentia que possuía uma cultura muito superior a dos demais jovens da sua idade.
- Ei João! Você está bem? – perguntou o mestre de obras.
“Merda, não é possível que isso esteja acontecendo justo agora e justo comigo” – nisso o rapaz caiu de joelhos na frente de todos e começou a vomitar. Era um vômito amarelo, porque João não havia tomado café da manhã naquele dia também.
- Iii rapaz, o caladinho tá no ruim, olha lá.
- Pois é, deve ter enchido a cara ontem.
Um dos mais velhos se aproximou de João:
- Ou, quer ajuda?
- Não fode cara, me deixa em paz.
- Ah, vai à merda sô.
O mestre de obras percebendo toda aquela situação e a agitação do pessoal, preocupado também com que aquilo atrapalhasse o serviço, dispensou João naquele momento. Ele simplesmente juntou forças para levantar e saiu cambaleando em direção ao ponto de ônibus. As pessoas que passavam por ele na calçada achavam que estava topando com um zumbi, porque andava em zig-zag e estava extremamente pálido.
Pouco tempo depois de ter sentado no ponto, o ônibus chegou. Quando entrou percebeu que era o mesmo ônibus que lhe deixou no serviço um pouco mais cedo. E dito e feito, lá estava o chão do veículo com uma substância marrom já seca e adicionada a ela se encontrava outra na coloração vermelha.
“Não é possível” – pensou João.
- Cobrador, por acaso alguém caiu aqui no ônibus hoje?
- Ué rapaz e não é que caiu. Hoje mais cedo uma mulher vomitou aqui, depois subiu outra e não viu, escorregou no vômito, bateu a cabeça e tudo. Tivemos até que parar o ônibus e chamar ambulância – Nisso, parou e observou melhor João e reconheceu o rapaz.
- Ah! Você tava aqui mais cedo né? Cê deve ter visto a mulher vomitando então. Rapaz, cê parece que tá no ruim também hein.
- Não, tô de boa, é só a falta de sol mesmo – disse João com uma voz fraca e procurando um lugar pra sentar.
Sentou e atrás dele estava sentada uma mulher muito gorda que fungava bem fundo com o nariz a cada dois segundos. Não bastasse isso, à medida que o ônibus ia andando, ela ficava olhando para as pessoas na rua e tentava fazer um comentário maldoso sobre todas que conseguisse. Seus comentários eram muito altos, às vezes, os fazia aos berros e até se levantava durante alguns segundos e depois voltava a sentar.
- FILHO DA PUTA, É UM IDIOTA MESMO, OLHÁ LÁ, QUE OTÁRIO.
- NÃO ACREDITO, OLHA QUE BABACA, QUERENDO ENTRAR NA FRENTE DO ÔNIBUS, TROUXA, FILHA DA PUTA!
- PUTA QUE PARIU, QUE HOMEM FEIO DA PORRA, PARECE O FRANKSTEIN!
Essa mulher estava dando nos nervos de João, o que é que ela tinha? Por que agia daquela maneira? Parecia odiar o mundo, muito mais do que ele. Por mais que fosse avesso as pessoas, não perdia seu tempo com elas, já aquela senhora, parecia que tinha algo a resolver com todo mundo. As fungadas continuavam cada vez mais fortes, soavam como se viessem do fundo de uma caverna profunda, entravam como um trovão dentro da cabeça de João.
- OLHA LÁ, SUA DESGRAÇADA. MADAME NOJENTA, SÓ DE BOA NESSE AR CONDICIONADO. VEM CÁ SUA PUTA, PRA EU TE ENSINAR O QUE É BOM!
João perdeu a paciência, reuniu as últimas energias que tinha virou-se e começou a falar com ela:
- Minha senhora, eu não sei o que você tem. Mas eu não to muito bem, eu sei que hoje não tá um dia fácil pra ninguém, mas ninguém é obrigado a ficar aguentando a senhora aí xingando aos berros todo mundo desse jeito. Sem contar que essas fungadas que você dá com o nariz a todo segundo são insuportáveis.
Essa última frase foi o suficiente para que a mulher desconsiderasse todo o resto que João já tinha falado e se transformasse numa quimera. Levantou-se mais uma vez e começou a esgoelar com ele:
- ESCUTA SEU MULEQUINHO FILHO DE UMA PUTA, MEU NARIZ TE INCOMODA É? – Nesse momento deu uma escarrada tão forte que pareceu que o ônibus todo havia tremido e logo em seguida cuspiu no pé de João – ASSIM TÁ BOM PRA VOCÊ? E ESCUTA AQUI, EU XINGO QUEM EU QUISER, OK?
João olhou para seu pé com toda aquela meleca e olhou mais uma vez para a mulher. Parece que naquele momento suas energias tinham até voltado, se levantou calmamente, foi até ela e limpou o sapato com a barra do vestido da estressada. Os demais passageiros olhavam toda aquela cena, atônitos. Não conseguiam acreditar que aquilo estava acontecendo no ônibus. A mesma reação tinham o cobrador e o motorista, sentiam que estavam num programa sensacionalista de televisão e apesar do espanto, de certo modo vibravam internamente com tudo aquilo e por isso mesmo não interviam em nada.
- Minha senhora esse cuspe no meu sapato é tão insignificante quanto a sua existência, pobre do seu vestido duplamente: por tocar o seu corpo e por agora ter sido usado para limpar algo que foi produzido por esse monte de banha empilhada. Provavelmente você xinga todo mundo, porque sabe que a sua própria existência e presença já são uma ofensa a humanidade em si, não teria como não tentar devolver, não é? A maioria das pessoas são dignas de pena, mas o seu caso é diferente. Você merece ser desconsiderada. Ter pena de você, já seria dar atenção de mais a um ser que a presença na terra não se explica, a não ser por acidente grotesco e horrendo da natureza...
Enquanto João proferia essas frases, a mulher estava paralisada e de repente todo aquele enorme corpo começou a ter convulsões, parecia que ia explodir e foi realmente o que aconteceu. Explodiu em um jato de vômito enorme, um tubo grosso e negro. Aquilo atingiu o peitoral de João em cheio, ele chegou a cair pra trás, buscando segurar em um dos bancos para não se machucar seriamente. A mulher caiu sentada também, chorando em soluços, as outras pessoas que estavam no ônibus, agora sim estavam em estado de choque total. Parecia que não havia motorista, que estava no piloto automático. João imediatamente levantou-se e puxou a cordinha, o ruído que isso produziu despertou a todos sendo que o motorista deu uma freada brusca, já abrindo as portas naquele instante, sem ao menos ainda ter chegado ao ponto de parada.
O rapaz desceu correndo do veículo e caminhando rapidamente terminou a pé o trajeto de volta para sua casa. Caminhava totalmente absorvido em seus pensamentos, mal observava o caminho que fazia. Eram pensamentos confusos e contraditórios que vagavam em sua cabeça, na expectativa de que através de uma colisão conseguiria formar um nexo sobre tudo o que havia ocorrido naquele dia. De repente, a luz surgiu, João parou repentinamente de caminhar e parado, olhando para o chão teve clareza daquela ideia.
Apesar do cheiro horrível que exalava do seu corpo, impregnado pelo vômito daquela mulher do ônibus, João enxergava isso justamente como a resposta: o vômito. Desde o inicio era ele que se comunicava com o rapaz, da mulher grávida, do seu próprio vômito e do último caso quando vomitaram nele. Eram sinais nítidos. Sobre o que? Sobre a própria existência humana. João aprendeu naquele dia, que o vômito de uma pessoa dizia muito mais sobre ela do que ele poderia imaginar. A coloração, a consistência, a composição e a quantidade poderiam exatamente dizer o que se passava na vida daquela pessoa.
A mulher grávida: um vômito marrom e de uma consistência pastosa superficial, com pequenos pedaços de comida. Tudo isso revelava que ela tentava se alimentar bem, mas que conseguia comer apenas o suficiente, o básico, não era um vômito constituído por muitas coisas. Porém seu bebê precisava de mais e aquela comida simples que ela ingeria todo dia, estava fazendo mal pra ele e também pra ela. O pai da criança a abandonou. Era difícil conseguir um emprego com uma gravidez já naquele estágio avançado, morava de favor com a mãe, a senhora que tentava acalmá-la no banco de trás, mas a mãe também era pobre e divorciada do marido, por isso só conseguia colocar o básico na mesa.
Sobre vômito de João, nem era necessário pensar muito. A coloração amarela já revelava praticamente tudo sobre aquele rapaz. Tudo que foi dito aqui, sua extrema pobreza e o orgulho de não comprar fiado ou pedir dinheiro emprestado ou até mesmo um prato de comigo a alguém. Por isso mesmo, quase não se alimentava e quando vomitava a única coisa que lhe restava era a própria bílis.
A revelação sobre o vômito daquela mulher gorda foi a mais assustadora para João. Ela estava morrendo! A cor negra do vômito que foi despejado sobre o seu peito, significava que para além do alimento e dos ácidos produzidos no estômago, havia sangue misturado a tudo isso. Combinação que resultava naquela cor negra. Sim, era por isso que xingava a todos. Uma doença grave, que quando recebeu o diagnóstico já era tarde de mais. Não havia tratamento e nenhum médico conseguia explicar o surgimento da doença, dia após dia a hemorragia interna aumentava. Não era uma senhora muito religiosa, o único conforto que lhe restou foi voltar-se contra o mundo, contra todas as pessoas. Malditas eram elas que ainda possuíam saúde e não valorizavam isso. Não sabiam o que era estar com os dias contados.
Chegando em casa, João sequer se lavou ou ao menos tirou a roupa. Colocou na vitrola um vinil de jazz pra tocar, a única coisa boa que seu pai havia deixado. Foi até a cozinha e apanhou uma garrafa de conhaque barato, tirou a rolha e começou a beber deitado no sofá, que por sinal também era sua cama. À medida que a música ia crescendo João ria, ria descontroladamente. Da condição daquelas duas mulheres, da sua própria condição, da sua mãe e no final da risada ofereceu um brinde a seu velho pai. Mentiu sobre a análise de seu vômito, mentiu porque não pesou que toda a noite virava quase uma garrafa de conhaque ou de aguardente e que dentro de si uma violência enorme crescia. Como não tinha pessoas a sua volta, o único foco que restava era ele mesmo. Por isso, de tempos em tempos, seu corpo denunciava a todas essas agressões, através de um simples, um ruidoso vômito.





quinta-feira, 20 de março de 2014

Ressaca

Abri os olhos e estava tudo verde. Era a fronha do meu travesseiro. Levantei um pouco a cabeça e senti que um fio de baba que vinha do canto esquerdo da boca ainda me conectava com aquele travesseiro. “Merda de ressaca” e pensei também “que se foda o trabalho hoje”, a única coisa que eu queria era conseguir chegar ao banheiro, expulsar toda minha podridão de espírito através de uma bela cagada e ficar horas no chuveiro.
Olhei no celular e já batia mais de dez horas da manhã, como mágica, assim que acabei de olhar as horas o filho da puta tocou, era do trabalho. Ainda não entendi porque tenho esse celular, boa parte do tempo ele só contribui para que os outros me fodam e nesse caso com certeza era algo assim.
- Luis, aqui quem fala é a Marlene, estamos ligando para o senhor para saber qual é o motivo do senhor não ter comparecido na firma hoje.
- Marlene, aqui quem fala é o Augusto, o Luis foi espiar o cu de uma vaca, e ela engoliu ele todinho pela bunda, já era pra ele. – e desliguei o telefone.
Mais um emprego jogado no ralo. Fazer o que? Agora o país era a sexta economia mundial, empregos de merda estavam sendo oferecidos a todo momento e ainda tem gente que reclama do atual governo. Era uma pena eu não ter saco pra me inscrever nesses programas sociais.
Chegando ao banheiro foi dito e feito. Cinquenta por cento da minha ressaca foi deixada no vazo. Porque que a maioria das pessoas não gosta de falar de merda? Mas muitas delas acham engraçado falar de peidos? Vai saber.
Depois liguei o chuveiro, sentei no chão do banheiro e fiquei lá olhando para o teto manchado de preto com a água caindo em cima de mim. Não estava preocupado com o valor das contas que as companhias mandariam. A luz, toda vez que cortavam, eu ia lá e fazia um gato. A água, era a mesma coisa: trancavam o registro e logo em seguida eu ia lá e quebrava o lacre. Com o passar do tempo aprendi quanto tempo eles demoravam pra voltar e olhar se eu não tinha feito alguma gambiarra. Quando estava próximo da data, ia lá e maquiava as coisas, ficava realmente parecendo que tudo ainda estava cortado. Só pagava as contas mais atrasadas quando pressentia que me levariam pra justiça. Meu esquema é perfeito. Aprendi todos esses truques com o meu pai, o velho era bom nisso. Poderia dar aula pra qualquer engenheiro graduado.
Saindo do banho, senti que precisava comer. Pensei em cozinhar, talvez um arroz com carne moída, mas as panelas estavam todas sujas e a pilha de louça estava tão grande que não sabia nem por onde começar. Aquela louça era um mostrengo que ficava me encarando, doido pra me devorar. É por isso, que muitas vezes eu passava dias sem colocar os pés na cozinha da minha casa.
Pensei que um pão com mortadela seria a solução, com certeza seria. Olhei pra mim e ainda estava pelado. Gostava de ficar pelado na minha casa. Se não fosse a chateação que isso geraria, andaria pelado na rua também. Coloquei uma camiseta amarrotada e percebi que minha barriga estava maior, a cerveja estava deixando suas marcas no meu corpo. Coloquei um calção e nem me lembrei de colocar a cueca. Às vezes um balanço para os bagos faz bem para os danados, mas só às vezes.
- Sr. Márcio me vê três pães e 200g de mortadela – gostava de comprar pães em quantidades ímpares.
- Tá numa ressaca, hein Luis – sr. Márcio disse isso dando uma limpada com o braço no seu grosso bigode. Pelo prato que vi no balcão parecia que ele tinha acabado de comer uma bela pratada de macarrão. Ah que inveja! Meu estômago ficou desesperado ao ver aquele prato.
Chegando em casa, abri os pães com a mão mesmo e meti a mortadela lá dentro, devorei tudo num piscar de olhos. Pronto, agora setenta por cento da minha ressaca já tinha passado, ainda estava pensando em que fazer com os outros trinta. Pensei que agora que meu emprego já era, tinha que tomar as providências para conseguir outro. Era simples, bastava ir numa agencia da prefeitura e ver o que eles tinham a oferecer. Se os caras perguntarem se você sabe cuspir fogo, diga que sim. Depois de contratado, devem realmente fazer você cuspir fogo, só de sacanagem, mas isso acontece só nos primeiros dias, logo te esquecem e logo te mandam embora. Mas eu estava tranquilo, afinal, éramos a sexta economia do mundo. Além do mais, íamos ter copa e olimpíadas, enquanto eles jogavam o jogo deles, jogava o meu.
Mas hoje não ia esquentar a cabeça com isso. Era meu dia de patrão, patrão da miséria, mesmo assim patrão. Arranquei a roupa, joguei no chão mesmo, eram só mais umas no meio da coleção de roupas que  já estavam espalhadas pela casa. Fui até a estante da sala, peguei um vinil da nona do Beethoven e coloquei pra rodar na vitrola. Peguei também uma long-neck na geladeira e comecei a beber sentado na minha poltrona na sala. Mais importante do que ter um estoque de arroz e carne moída era ter um estoque de cervejas para me salvar. Ao menos comigo dava certo, agora noventa por cento da ressaca já estava curada.
Ouvir Beethoven, me fez lembrar da noite anterior. Foi num desses barzinhos universitários, porque ainda são os poucos que tocam alguma música decente. Gosto de ficar num canto, tomando minha cerveja ou vodca e vendo a molecada mandar brasa. Eles são bons, estão tocando mais jazz agora e isso me agrada muito. Não converso com quase ninguém, só às vezes quando o bar está muito cheio e percebo que alguma garota teceu uma frase inteligente, tento puxar conversa, emendar algo sobre o que ela estava falando. Às vezes rola, às vezes consigo um contato de línguas, raramente um sexo, mas também basta quando realmente acontece uma conversa inteligente.
Mas é realmente muito difícil me relacionar com o pessoal que frequenta esses bares. Nem sou tão mais velho do que eles, alguns são até mais velhos que eu, mas não dá, me sinto uma aberração ali. Não entrei na faculdade igual a eles, não rolou pra mim, já estava me virando sozinho muito antes da época da faculdade, pulando como um macaco entre os empregos. Porém nem de longe achava que eles fossem mais espertos do que eu, não existia comparação, éramos espécies diferentes de humanidade.
Conversavam muito alto, não prestavam atenção nos músicos, nem a bebida respeitavam e era a juventude intelectual da nossa cidade. Raras exceções salvavam, mas no geral quando eu olhava pra tudo aquilo, investia pesado na bebida. Era um dos primeiros a chegar ao bar e um dos últimos a sair. Muitas vezes quando o bar estava fechando e eu continuava lá no meu canto enchendo a cara, alguns patetas bêbados tentavam puxar conversa comigo.
- Ei brother, você é dos meus. Direto tá aqui, firme e forte, só chapando e nem muda de expressão.
- Vai se foder!
- Iii, tá griladinho hein. Fica aí na sua mermão.
- Vai se foder ao quadrado, babaca.
O cara já veio na minha direção pra tentar engrossar, vendo isso, o dono do bar já gritou: “Vamo parar com essa porra aí e vamo vazar daqui também”.
Beleza, levantei, nem olhei para o babaca, paguei minha conta e dei o fora. Mas também não é assim. Confesso que estou mentindo. Não sou um cara tão durão assim. Muitas vezes, na verdade me comporto como um idiota, principalmente com as mulheres. A vontade de sexo pode te pegar pelo pé. Sinto que forço a barra, me exibindo, dizendo baboseiras poéticas só para querer impressionar. O bom, é que pelo menos nunca insisto. Logo desanimo e perco a vontade de conversar com todo mundo, mas quando estou muito bêbado, tem dias que até pareço um deles, um alegre, bêbado e feliz universitário.
O fato é esse, quando estamos bêbados todo mundo parece mais interesse, sóbrio, todo mundo é um saco para mim. Boa parte do tempo, nem eu mesmo me suporto. Só existem dois caras que eu gosto de conversar. Um saca muito de cinema e música e outro de literatura. Não são nada de mais, assim como eu, mas não sei o que fazem que me sinto bem quando estou conversando com eles. Talvez sejam de outra espécie também.
Porra! Pensar em tudo isso estava fazendo minha ressaca voltar. Estava quase vencendo ela, só faltava dez por cento agora, não era possível que ia começar a perder. Precisava tomar fôlego e acabar com essa luta de vez. Peguei o celular e liguei para o cara que manjava de literatura. Talvez por isso que ainda tinha esse celular.
- Alô?
- Pedro? É o Luis, beleza?
- O cara, e aí beleza? Eu to de boa e você como tá?
- To bem cara, ainda com um pouco de ressaca, to lutando contra ela, logo logo eu derrubo essa desgraçada.
- Haha só vez mesmo, o que você fez pra tá assim?
- Que pergunta é essa cara? Obviamente eu bebi, enchi a cara, como sempre naquele mesmo bar.
- Só to perguntando ué, e foi bom lá?
- Foi de boa, a mesma música, as mesmas pessoas parecendo zumbis. Acho que a única diferença é que ao invés de comer cérebros, eles bebem cerveja.
- Haha boto fé. Deve ser por isso, que estão fazendo tantos seriados de zumbi assim.
- Sim, claro! Porra, eu nunca pensaria isso, seu filho da puta, genial.
- Haha, só to zuando.
- Cara, você leu os diários do Bukowski que foram publicados quando ele estava perto de morrer?
- Com certeza, é genial. Tenho aqui em casa, dá pra ver bem o porquê que a última novela dele saiu daquele jeito.
- Pois é. Ou, vou nessa. Valeu pela conversa Pedro. Abraços.
- Ué tá. Você é muito maluco mesmo, mas se cuida, qualquer dia a gente marca de beber umas.

Desliguei o telefone. Finalmente. Olhei para o chão da sala e lá estava minha ressaca estendida. Parecia uma mulher de quarenta anos só que com a aparência de uma de setenta por causa de todas as bebedeiras e cigarros que passaram em sua vida. Seus cabelos eram tingidos de loiro e já estavam bem desbotados. Estava só de blusa e calcinha. A blusa manchada de vômito e a calcinha também tinha uma mancha, provavelmente do gozo dela que secou. Tinha vários roxos na perna, mas isso era o de menos. Uma enorme poça de sangue se formava em volta da sua cabeça e ver aquela cena me causava um arrepio na espinha mesmo sabendo que fui eu que causei tudo aquilo. De repente, ela se levantou. Jogou para trás os cabelos ensopados de sangue, abriu a porta da sala e antes de sair olhou para mim dando uma piscadinha e disse: “VAI SE FODER”.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Partido

Qual é o partido que você toma? Conhaque, uísque ou a boa e velha cervejinha do dia a dia? De que lado você samba ou em qual trincheira o avestruz vai enfiar a cabeça? Talvez o avestruz tenha sambado de tanta cerveja que bebeu misturada com o uísque e o conhaque e não acabou assumindo partido nenhum, simplesmente deu no pé, porque tava de saco cheio de tudo isso e já não via mais sentido nenhum em toda essa apologia. Será mesmo que podemos culpar o nosso amigo avestruz ou a culpa é do partido e da cerveja? E se a culpa estiver dos dois lados? Aí acho que o buraco fica mais em baixo.
Desde que Lênin e seus companheiros estavam decididos em fazer a revolução, suas intenções eram gloriosas e as suas preocupações as mais belas possíveis. De fato eram, não pensem vocês aqui que estou ironizando. Mas não teriam eles matado a criança no parto? Pois o maldito e velho dedo indicador ainda estava erguido e metralhando para todos os lados, não teria até mesmo Marx usado desse infame dedão contra os velhos companheiros sabota... anarquistas? Qual a diferença entre o arpão que se encontra na mão de um comunista para a de um nazista a não ser a metralhadora que se esconde por de trás da do último, penso que no caso de Stalin essa diferença nem fosse tão clara assim.
Mas será mesmo que esses arpões estão engatilhados apenas nas mãos dos grandes líderes? Ou quando você diz “tira a roupa” ou “vem por cima”, não seria um mini indicador embutido no seu inconsciente? Não é fácil responder, não é fácil saber até onde realmente podemos eliminar as mais poéticas ditaduras que existem nas relações humanas e isso acaba colocando em cheque todo um sonho de transformação do nosso querido globo azul.
Com tudo isso então, os indiferentes e sacanas soltam seus rojões. “Viva! A desigualdade sempre existiu e sempre vai existir.” Esses filhos da puta adoram chamar de preguiçosos, quem no fim das contas enche a podre e fedorenta barriga deles. Diferentemente dos “companheiros dos dedões” esses merecem o mais belo soco nos bagos e um belo cuspe na cara. É uma lástima que as penas de passarinho, as pontas da estrela e até mesmo os raios de sol ofusquem bastante a nossa visão, deixando difícil de enxergar quem é quem. É por isso que hoje em dia meu irmãozinho você precisa ter o nariz do mais sábio perfumista pra saber diferenciar até onde vai o cheiro da merda e até onde vai o cheiro da flor. Enquanto isso, a grande máquina está enchendo os bolsos dos pseudo-revolucionários e do outro lado o coliseu dos egos está com tantos espetáculos que quem decide largar a espada logo cai na chacota dos gladiadores.
Mas nesse mundo ainda caminham Sidartas, juro pra vocês que apesar de poucos, avistei alguns desses na minha vida.  E não pensem que eles não podem estar na maldita engenhoca ou no coliseu. Na primeira, caminham com cautela, esperando o momento de mandar tudo isso pro quinto dos infernos, no segundo evitam cortar cabeças e quando o fazem derramam sinceras lágrimas no interior de suas consciências. Há aqueles que não estão em nenhum dos dois e sim na estrada dos desencontros e esses são os que eu realmente acredito, afinal de contas, Sidarta e Stalin começam com a mesma letra e para se apagar o nome de um e começar a escrever o de outro basta a sedutora borracha da corrupção. Já os raros vagabundos iluminados plantam suas sementes sem com isso carregarem nas costas o grande e pesado fardo da cruz da revolução, anseiam por ela naquilo que buscam germinar, mas também sabem que para o botão de rosa desabrochar é necessário que gladiadores e maquinistas larguem suas espadas e esvaziem os bolsos na sincera vontade de ouvir verdadeiramente o rio.