segunda-feira, 6 de abril de 2015

Velha Canção

Lembro do meu pai, sentado no sofá de nossa casa, cabeça escorada em uma das mãos e os ralos cabelos brancos ali presentes. Escuta a canção que toco com os olhos fechados, os meus, cheios d’agua cintilam com o peso de minha mão. Toco um folk americano vindo do lobo que pulsa no peito. A ele isso não remete a águias e coiotes e ao ensolarado deserto da Califórnia. A ele isso remete a infância, dos tempos da roça, do fim de tarde laranja que ele assistia escorado no peito de meu avô.
Quando termino ele pergunta de quem é, digo que aprendi com um índio, pois dizer de mim é menosprezar a grandeza daquele momento. Foi a última vez que toquei algo para meu pai, foi a última vez que dedilhei algo para mim. Foi a última vez que beijei a testa oleosa de minha mãe e que abracei com amor gritante meu irmão.
Compus aquela canção na espelunca do meu quarto, justamente pensando que se meu pai a escutasse, acharia bom. E quando terminei de tocar, senti o peso da vida sobre a alma e aquela despedida era tão difícil que de modo algum eu queria aceitar.
No dia seguinte, estava preso, muitos de meus amigos mortos e eu sabia que seus pais não ouviram canções, não escutaram poesias, nem choros, nem mesmo um soco da euforia da cachaça, muitos deles perderam seus frutos sem uma ópera final. Os tempos eram outros, um escritor militante como eu, que sonhava em ser escritor, mas que era militante, caiu fácil nas mãos dos bandidos, não era ninguém, não tinha ninguém e suas páginas desconhecidas. Somente o teatro da política em que ele pisou.
Primeiro me bateram, bateram muito, o som dos ossos rachando era abafado pelos das bordoadas e principalmente pelos gritos. A dor posterior era tão enlouquecedora que te levava a pensar na menina que te deixou a três anos atrás, depois no que devia ter feito, nas possibilidades, preparações físicas mentais, nas instruções, no caminho que não tomou e onde estava. Estava na merda. O pensamento ruía, a imponente geleira se dissolve na água.
Recuperar a consciência era bárbaro. Olhar para aqueles rostos, grandes caveiras vestidas com bonés militares, não era fácil. Queriam a informação que já sabiam, precisavam apenas de um pretexto para te matar. E como corria as coisas lá fora? Já havia tudo ruído ou era só um começo? Não sei, nunca soube e nunca saberei.
Molhado de suor pelos meus medrosos pensamentos eu cogitava. A presença de meus companheiros só se manifestava por gritos, os gritos eram meus companheiros. Começava a me apegar ao timbre de cada berro. Quando sessavam me sentia solitário. E eles passavam, olhavam e uma hora iriam te selecionar: bem amada pátria doida.
E foi assim durante três meses. Saí de lá só por que era um pedaço de merda na pata de uma mosca. Saí de lá como um boneco da Disney que acaba de ser espetado por um alfinete e perde todo o ar dentro de si. Saí de lá pensando em meu pai e naquela canção que cantei. Meu pai estava morto. Não por eles, mas porque já não conseguia lembrar mais das tardes laranjadas, deitado no peito de meu avô.
Quando me informei sobre tudo, percebi que as coisas andavam a meio curso, tinham deposto a presidente com o vice assumindo ao lado dos golpistas. O ataque dos abutres não era aberto, comiam os rins na escuridão dos dias. Me enrabaram como enrabaram muitos, país a fora, mas era como se debaixo da manhã cinza as pessoas caminhassem calmamente lendo o jornal.
Eu já não estava mais ali, havia sido excluído da sociedade. Deletaram minha sombra, consequentemente meu rg, o amor que as pessoas poderiam ter por mim.

Lá fora, sapos chovem em forma de gotas e eu escrevo pesando no futuro. Escrevo imaginando, assim como imaginei a canção dita a meu pai, somente os acordes foram de verdade. Enquanto escrevo meus amigos bebem e transam a bancarrota, meus colegas deliram em sua arte fechada, as pessoas discutem quem está certo.
Há três dias não vejo o sol, há semanas não sinto o amor, vago entre o teatro do poder e o desejo frustrado. Me embriagado e rezo para o sono nunca terminar. Minha voz reflete tudo isso e ninguém percebe. Se cada parágrafo tivesse três frases, quantas folhas eu escreveria?

Procuro os velhos companheiros e acho dois deles. Estão acuados como gatinhos pequenos, me dizem que eu devia ter sido mais direto, mais duro e não enrolar tanto. Argumento que sempre agi de acordo com aquilo que acreditava e não faria diferente e que naquele tabuleiro de xadrez não éramos nada. Mesmo assim, olham pra mim implorando que eu lhes diga o que fazer. Eu tinha a resposta ao mesmo tempo que não tinha, sempre importou ter certeza das coisas. Era necessário organizar quem sobrou, alguns optariam pela luta armada, devíamos saber lidar com esses, talvez nós mesmos pegaríamos em armas, teriam que saber lidar com nós. Enfim o sol só apareceria quando o sangue evaporasse.
Parece que em meio a uma ditadura as coisas são nítidas ao mesmo tempo que secretas. Sabíamos que eram os excluídos mesmo que eles disfarçassem, o medo tinha cheiro assim como o ódio dos tiranos. Isso valia para os locais, os esconderijos cheiravam e cheiravam forte, se os milicos tivessem um bom olfato nem precisariam torturar. Aliás, torturavam pra gozar, somente isso. Enfim, com um bom nariz, achariam tudo. Para nossa sorte, é que pensavam com a pica.
A história nos ensinava que a primeira bala disparada refletiria vinte outras balas contra nós. Mesmo assim era necessário atirar. O verbo foi também uma boa AK 47. Não tinha jeito de qualquer maneira morreríamos aos montes e 50 anos depois avaliar quem estava certo ou errado é de vomitar os bagos.
Na medida que dava a gente ia fazendo. Os nossos corpos surrados, a nossa mira não era boa, as pernas fracas e mesmo assim fazíamos o que dava. Nesses tempos você descobre que a cidade tem tantos buracos como um queijo suíço e você é o verme. Não há comunicação e você desconfia de todos, se entende uma frase errada enfia uma faca na nuca do camarada.

Pareço um covarde escrevendo esse texto, diante dessa chuva e diante do dia de amanhã.
Não importa, sempre penso na ideia de que tudo se resume ao velho caos da natureza, a violenta e esmagadora luta pela sobrevivência que transformamos num grande teatro que se diz racional. Bobagem, queremos sobreviver, queremos comer nossa preza, transar e gozar, e os grandes modos produtivos do mundo humano, nada mais são do que atos desse grande teatro. Muitas peças são encenadas ao mesmo tempo e nos achamos importantes sendo que somos apenas a porra de um espermatozoide na história de tudo e nos achamos importantes. A única que realmente nos conferiu alguma importância foi a nossa mãe, mesmo a prostituta que teve que abortar o filho.
Quantas vezes em meio aos dias de ações clandestinas, não pensei em somente ter uma noite de prazer e conforto, uma transa gostosa e cobertas quentes, e por isso sou pior do que os outros? Mas no dia seguinte levantava cedo, na verdade o sono era escasso, e fazia o que tinha que ser feito, tentava melhorar as coisas. Nós somos os nossos desejos ou aquilo que fazemos?


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Rubra Flor

A espessura das palavras é algo extremamente importante. Tento construí-las como algo denso, quase impenetrável, que por si só terá a firmeza que necessita para se sustentar solitário. Retratar a beleza talvez seja o mais difícil. Não que se queira ignorar o fator de toda miséria material, porém é necessário transformar.
Todos carregam em si um tenebroso passado, uma quantidade imensa de chagas, que qualquer bofetão, pode afastar ao invés de acordar. Quando estava com Julia e sentia a respiração frágil dela, minha mão hesitava em tocar aquele corpo, só conseguia pensar em proteção.
Quando os olhos abriram, pude notar um grande conforto. Ela estava na nuvem do mais velho ancião. Qualquer sopro poderia ser trágico. Deitei a mão levemente em suas curvas e os olhos respondiam trocando pequenos afagos com os meus. Faz dois anos que isso aconteceu. Agora ela está ali, deitada, há uns dez metros de distância, no campo amarelo dourado pelo sol, cujas plantas eu não sei o nome.
Queria correr em sua direção, mas a fadiga é minha âncora e logo teremos que voltar aos fatos cotidianos. Sempre acreditei na força da transformação, porém em certos momentos comecei a duvidar dos métodos. Somos todos irmãos. Aprendi com ela a tomar cuidado com as palavras e hoje sei que um abraço amoroso é mais certeiro que meus livros vermelhos. Espero que não haja qualquer interpretação rancorosa em tudo isso.
Eis a poética da coisa. Caminhávamos eu e ela, lado a lado na grande marcha. Aqui, um momento de pulsão em minha vida. Creio que não era diferente com Julia. Num instante passou o braço em minha cintura e sentimos na pele o entendimento da palavra companheirismo. Marchávamos em pró do acesso a metrópole. Queríamos realmente ter acesso a aquilo? Almejamos o acesso ao sonho.
Depois no boteco, os companheiros bradavam os seus feitos. Eram engraçados aqueles momentos. Na base da cachaça, todos eram pra mim gigantescos heróis. Eu e Julia fazíamos parte daquele panteão. No auge das horas, os assuntos eram inacabados, não concluíamos nada, mas sabíamos que naquela unidade, tínhamos certeza de tudo.
Depois bamboleamos os dois de volta pra casa em cima de nossas magras pernas. No caminho, um gatinho de pelo preto e branco apareceu, era o nosso novo companheiro. Com ele atravessamos a cidade e quando passava sua língua lixa em nossos braços, tremíamos em risos ofegantes.
Julia é pra mim a flor vermelha da militância poética. Em seu centro se esconde um dourado vibrante, que se expande quando enche os olhos d’agua. Deitar ao seu lado era magnifico, porém quando caminhávamos juntos, eram esses os momentos que me constituíam força e vigor.
Certa manhã, deitados na cama, ela acordou dando risadas escandalosas.
- Que foi? – perguntei.
- Sonhei que grandes tomates usavam coroas.
- Nossa!
- Você acha estranho?
- Algo difícil né.
- Por quê?
- Não sei, nunca vi algo do tipo.
- Só acredita no que vê?
Ela estava nua e o seu corpo vermelho devido as risadas. De repente taquei-lhe um beijo e acreditei que aqueles tomates eram sujeitos bacanas. Gostávamos de tomar café da manhã ainda molhados pela água do banho. Toalhas soavam um tanto chatas e secar no decorrer do dia parecia mais divertido.
Um tanto absurdo. As reuniões coletivas eram marcadas por longos discursos e nem todos germinavam seus frutos. Era nos bastidores onde tudo se ajeitava. Tenho saudade deles. Sei que cada um tem seu tempo e com alguns, eu e Julia, deitávamos, brincávamos e amávamos. Sei que cada um tem seu tempo e espero também que compreendam meus erros e lembrem dos largos sorrisos que abríamos uns aos outros.
Hoje, separados nas trincheiras, sigo com meus escritos. Às vezes, penso que estou perdendo as forças, mas uma breve respiração me faz olhar para as pétalas que voam e reencontro meu caminho.
O mais compreensível e sagaz de todos, tinha uma barba muito cerrada e uma voz doce. Foi ele que me apresentou Julia. Ela usava um vestido branco que no centro possuía um grande girassol. Ele uma bata multicolorida e uma bermudinha de jogador de bola.
- Essa é a Julia.
Quando fui cumprimenta-la, me olhou de um jeito tão vivo penetrando facilmente na minha alma e de cara descobriu meia dúzia de defeitos que eu tinha. Ali me entreguei, a todo universo dela, de partidos, de eloquentes discursos, e de decepções intermitentes, que no fim, nunca superavam o carinho da camaradagem.
Um dia, tive o seguinte sonho:
Caminhava na rua sozinho, tudo em volta era cinza, somente meu corpo cintilava um branco estranho. Quando cruzei a primeira esquina, dei de cara com uma grande passeata de corpos cinzas mecânicos. Magneticamente meu corpo fora atraído por aquele fluxo. Todos olhavam para mim devido a cor que possuía, mas seguiam seu caminho, eu seguia com eles.
O destino final era uma enorme praça. Era perceptível que no centro da praça alguma coisa acontecia. Corri para ver o que era. Tudo ali possuía muitas cores. Todos os meus companheiros ali estavam. No centro estava Julia. Eles pareciam delicadas abelhas a procura de mel e se acariciavam. Julia era a grande flor. Eles explodiam em cor. Não era a cor original de seus corpos, vagueavam por infinitas aquarelas. Todos me olhavam convidativos.
- Você não vem? – perguntou Julia.
Percebi que estava descalço e comecei a caminhar em sua direção. Meus pés entraram numa morna lagoa. Rapidamente a agua já batia em meu pescoço. Senti o gosto das cores. Eu era um deles.