A espessura
das palavras é algo extremamente importante. Tento construí-las como algo
denso, quase impenetrável, que por si só terá a firmeza que necessita para se
sustentar solitário. Retratar a beleza talvez seja o mais difícil. Não que se
queira ignorar o fator de toda miséria material, porém é necessário
transformar.
Todos
carregam em si um tenebroso passado, uma quantidade imensa de chagas, que
qualquer bofetão, pode afastar ao invés de acordar. Quando estava com Julia e
sentia a respiração frágil dela, minha mão hesitava em tocar aquele corpo, só
conseguia pensar em proteção.
Quando os
olhos abriram, pude notar um grande conforto. Ela estava na nuvem do mais velho
ancião. Qualquer sopro poderia ser trágico. Deitei a mão levemente em suas
curvas e os olhos respondiam trocando pequenos afagos com os meus. Faz dois
anos que isso aconteceu. Agora ela está ali, deitada, há uns dez metros de
distância, no campo amarelo dourado pelo sol, cujas plantas eu não sei o nome.
Queria
correr em sua direção, mas a fadiga é minha âncora e logo teremos que voltar
aos fatos cotidianos. Sempre acreditei na força da transformação, porém em
certos momentos comecei a duvidar dos métodos. Somos todos irmãos. Aprendi com
ela a tomar cuidado com as palavras e hoje sei que um abraço amoroso é mais
certeiro que meus livros vermelhos. Espero que não haja qualquer interpretação
rancorosa em tudo isso.
Eis a
poética da coisa. Caminhávamos eu e ela, lado a lado na grande marcha. Aqui, um
momento de pulsão em minha vida. Creio que não era diferente com Julia. Num
instante passou o braço em minha cintura e sentimos na pele o entendimento da
palavra companheirismo. Marchávamos em pró do acesso a metrópole. Queríamos
realmente ter acesso a aquilo? Almejamos o acesso ao sonho.
Depois no
boteco, os companheiros bradavam os seus feitos. Eram engraçados aqueles
momentos. Na base da cachaça, todos eram pra mim gigantescos heróis. Eu e Julia
fazíamos parte daquele panteão. No auge das horas, os assuntos eram inacabados,
não concluíamos nada, mas sabíamos que naquela unidade, tínhamos certeza de
tudo.
Depois bamboleamos
os dois de volta pra casa em cima de nossas magras pernas. No caminho, um
gatinho de pelo preto e branco apareceu, era o nosso novo companheiro. Com ele atravessamos
a cidade e quando passava sua língua lixa em nossos braços, tremíamos em risos
ofegantes.
Julia é pra
mim a flor vermelha da militância poética. Em seu centro se esconde um dourado
vibrante, que se expande quando enche os olhos d’agua. Deitar ao seu lado era
magnifico, porém quando caminhávamos juntos, eram esses os momentos que me
constituíam força e vigor.
Certa manhã,
deitados na cama, ela acordou dando risadas escandalosas.
- Que foi? –
perguntei.
- Sonhei que
grandes tomates usavam coroas.
- Nossa!
- Você acha
estranho?
- Algo
difícil né.
- Por quê?
- Não sei,
nunca vi algo do tipo.
- Só
acredita no que vê?
Ela estava
nua e o seu corpo vermelho devido as risadas. De repente taquei-lhe um beijo e
acreditei que aqueles tomates eram sujeitos bacanas. Gostávamos de tomar café
da manhã ainda molhados pela água do banho. Toalhas soavam um tanto chatas e
secar no decorrer do dia parecia mais divertido.
Um tanto
absurdo. As reuniões coletivas eram marcadas por longos discursos e nem todos
germinavam seus frutos. Era nos bastidores onde tudo se ajeitava. Tenho saudade
deles. Sei que cada um tem seu tempo e com alguns, eu e Julia, deitávamos,
brincávamos e amávamos. Sei que cada um tem seu tempo e espero também que
compreendam meus erros e lembrem dos largos sorrisos que abríamos uns aos
outros.
Hoje,
separados nas trincheiras, sigo com meus escritos. Às vezes, penso que estou
perdendo as forças, mas uma breve respiração me faz olhar para as pétalas que
voam e reencontro meu caminho.
O mais
compreensível e sagaz de todos, tinha uma barba muito cerrada e uma voz doce.
Foi ele que me apresentou Julia. Ela usava um vestido branco que no centro
possuía um grande girassol. Ele uma bata multicolorida e uma bermudinha de
jogador de bola.
- Essa é a
Julia.
Quando fui
cumprimenta-la, me olhou de um jeito tão vivo penetrando facilmente na minha
alma e de cara descobriu meia dúzia de defeitos que eu tinha. Ali me entreguei,
a todo universo dela, de partidos, de eloquentes discursos, e de decepções
intermitentes, que no fim, nunca superavam o carinho da camaradagem.
Um dia, tive
o seguinte sonho:
Caminhava na
rua sozinho, tudo em volta era cinza, somente meu corpo cintilava um branco
estranho. Quando cruzei a primeira esquina, dei de cara com uma grande passeata
de corpos cinzas mecânicos. Magneticamente meu corpo fora atraído por aquele
fluxo. Todos olhavam para mim devido a cor que possuía, mas seguiam seu
caminho, eu seguia com eles.
O destino
final era uma enorme praça. Era perceptível que no centro da praça alguma coisa
acontecia. Corri para ver o que era. Tudo ali possuía muitas cores. Todos os
meus companheiros ali estavam. No centro estava Julia. Eles pareciam delicadas
abelhas a procura de mel e se acariciavam. Julia era a grande flor. Eles
explodiam em cor. Não era a cor original de seus corpos, vagueavam por
infinitas aquarelas. Todos me olhavam convidativos.
- Você não
vem? – perguntou Julia.
Percebi que
estava descalço e comecei a caminhar em sua direção. Meus pés entraram numa morna
lagoa. Rapidamente a agua já batia em meu pescoço. Senti o gosto das cores. Eu
era um deles.