Lembro do meu pai, sentado no sofá de nossa casa,
cabeça escorada em uma das mãos e os ralos cabelos brancos ali presentes.
Escuta a canção que toco com os olhos fechados, os meus, cheios d’agua cintilam
com o peso de minha mão. Toco um folk americano vindo do lobo que pulsa no
peito. A ele isso não remete a águias e coiotes e ao ensolarado deserto da
Califórnia. A ele isso remete a infância, dos tempos da roça, do fim de tarde
laranja que ele assistia escorado no peito de meu avô.
Quando termino ele pergunta de quem é, digo que
aprendi com um índio, pois dizer de mim é menosprezar a grandeza daquele
momento. Foi a última vez que toquei algo para meu pai, foi a última vez que
dedilhei algo para mim. Foi a última vez que beijei a testa oleosa de minha mãe
e que abracei com amor gritante meu irmão.
Compus aquela canção na espelunca do meu quarto,
justamente pensando que se meu pai a escutasse, acharia bom. E quando terminei
de tocar, senti o peso da vida sobre a alma e aquela despedida era tão difícil que de modo algum eu queria aceitar.
No dia seguinte, estava preso, muitos de meus amigos
mortos e eu sabia que seus pais não ouviram canções, não escutaram poesias, nem
choros, nem mesmo um soco da euforia da cachaça, muitos deles perderam seus
frutos sem uma ópera final. Os tempos eram outros, um escritor militante como
eu, que sonhava em ser escritor, mas que era militante, caiu fácil nas mãos dos
bandidos, não era ninguém, não tinha ninguém e suas páginas desconhecidas.
Somente o teatro da política em que ele pisou.
Primeiro me bateram, bateram muito, o som dos ossos
rachando era abafado pelos das bordoadas e principalmente pelos gritos. A dor
posterior era tão enlouquecedora que te levava a pensar na menina que te deixou
a três anos atrás, depois no que devia ter feito, nas possibilidades,
preparações físicas mentais, nas instruções, no caminho que não tomou e onde
estava. Estava na merda. O pensamento ruía, a imponente geleira se dissolve na água.
Recuperar a consciência era bárbaro. Olhar para
aqueles rostos, grandes caveiras vestidas com bonés militares, não era fácil.
Queriam a informação que já sabiam, precisavam apenas de um pretexto para te
matar. E como corria as coisas lá fora? Já havia tudo ruído ou era só um
começo? Não sei, nunca soube e nunca saberei.
Molhado de suor pelos meus medrosos pensamentos eu
cogitava. A presença de meus companheiros só se manifestava por gritos, os
gritos eram meus companheiros. Começava a me apegar ao timbre de cada berro.
Quando sessavam me sentia solitário. E eles passavam, olhavam e uma hora iriam
te selecionar: bem amada pátria doida.
E foi assim durante três meses. Saí de lá só por que
era um pedaço de merda na pata de uma mosca. Saí de lá como um boneco da Disney
que acaba de ser espetado por um alfinete e perde todo o ar dentro de si. Saí
de lá pensando em meu pai e naquela canção que cantei. Meu pai estava morto.
Não por eles, mas porque já não conseguia lembrar mais das tardes laranjadas,
deitado no peito de meu avô.
Quando me informei sobre tudo, percebi que as coisas
andavam a meio curso, tinham deposto a presidente com o vice assumindo ao lado
dos golpistas. O ataque dos abutres não era aberto, comiam os rins na escuridão
dos dias. Me enrabaram como enrabaram muitos, país a fora, mas era como se
debaixo da manhã cinza as pessoas caminhassem calmamente lendo o jornal.
Eu já não estava mais ali, havia sido excluído da
sociedade. Deletaram minha sombra, consequentemente meu rg, o amor que as
pessoas poderiam ter por mim.
Lá fora, sapos chovem em forma de gotas e eu escrevo
pesando no futuro. Escrevo imaginando, assim como imaginei a canção dita a meu
pai, somente os acordes foram de verdade. Enquanto escrevo meus amigos bebem e
transam a bancarrota, meus colegas deliram em sua arte fechada, as pessoas
discutem quem está certo.
Há três dias não vejo o sol, há semanas não sinto o
amor, vago entre o teatro do poder e o desejo frustrado. Me embriagado e rezo
para o sono nunca terminar. Minha voz reflete tudo isso e ninguém percebe. Se
cada parágrafo tivesse três frases, quantas folhas eu escreveria?
Procuro os velhos companheiros e acho dois deles.
Estão acuados como gatinhos pequenos, me dizem que eu devia ter sido mais
direto, mais duro e não enrolar tanto. Argumento que sempre agi de acordo com
aquilo que acreditava e não faria diferente e que naquele tabuleiro de xadrez
não éramos nada. Mesmo assim, olham pra mim implorando que eu lhes diga o que
fazer. Eu tinha a resposta ao mesmo tempo que não tinha, sempre importou ter
certeza das coisas. Era necessário organizar quem sobrou, alguns optariam pela
luta armada, devíamos saber lidar com esses, talvez nós mesmos pegaríamos em
armas, teriam que saber lidar com nós. Enfim o sol só apareceria quando o
sangue evaporasse.
Parece que em meio a uma ditadura as coisas são
nítidas ao mesmo tempo que secretas. Sabíamos que eram os excluídos mesmo que
eles disfarçassem, o medo tinha cheiro assim como o ódio dos tiranos. Isso
valia para os locais, os esconderijos cheiravam e cheiravam forte, se os
milicos tivessem um bom olfato nem precisariam torturar. Aliás, torturavam pra
gozar, somente isso. Enfim, com um bom nariz, achariam tudo. Para nossa sorte,
é que pensavam com a pica.
A história nos ensinava que a primeira bala disparada refletiria
vinte outras balas contra nós. Mesmo assim era necessário atirar. O verbo foi
também uma boa AK 47. Não tinha jeito de qualquer maneira morreríamos aos
montes e 50 anos depois avaliar quem estava certo ou errado é de vomitar os
bagos.
Na medida que dava a gente ia fazendo. Os nossos
corpos surrados, a nossa mira não era boa, as pernas fracas e mesmo assim
fazíamos o que dava. Nesses tempos você descobre que a cidade tem tantos
buracos como um queijo suíço e você é o verme. Não há comunicação e você
desconfia de todos, se entende uma frase errada enfia uma faca na nuca do
camarada.
Pareço um covarde escrevendo esse texto, diante dessa
chuva e diante do dia de amanhã.
Não importa, sempre penso na ideia de que tudo se
resume ao velho caos da natureza, a violenta e esmagadora luta pela
sobrevivência que transformamos num grande teatro que se diz racional. Bobagem,
queremos sobreviver, queremos comer nossa preza, transar e gozar, e os grandes
modos produtivos do mundo humano, nada mais são do que atos desse grande
teatro. Muitas peças são encenadas ao mesmo tempo e nos achamos importantes
sendo que somos apenas a porra de um espermatozoide na história de tudo e nos
achamos importantes. A única que realmente nos conferiu alguma importância foi
a nossa mãe, mesmo a prostituta que teve que abortar o filho.
Quantas vezes em meio aos dias de ações clandestinas,
não pensei em somente ter uma noite de prazer e conforto, uma transa gostosa e
cobertas quentes, e por isso sou pior do que os outros? Mas no dia seguinte
levantava cedo, na verdade o sono era escasso, e fazia o que tinha que ser
feito, tentava melhorar as coisas. Nós somos os nossos desejos ou aquilo que
fazemos?