terça-feira, 19 de abril de 2016

Uma esquina de bar – Uma alcateia de lobos

Quem vos fala é um homem.

Bebo cada gole maquinalmente. Meu corpo é frio, rígido, sem expressão. Bebo cada gole pausadamente, os movimentos são precisos, lentos, pesados.
Esqueci de mencionar que faço isso sentada no meio fio de uma esquina. Esquina essa que de um lado possui um bar e de outro também. Os bares são tão lotados que os clientes ocupam toda a rua, no fim, é como se tudo fosse um único estabelecimento.
Esqueci também de mencionar, que estou sentada no meio fio e de pernas bem abertas. Que não uso calcinha e que os pelos de minha vagina estão tão grandes como se eu nunca tivesse me depilado na vida.
Continuo sentada ali, tomando minha cerveja e observando tudo em volta. Me chama atenção os rostos das pessoas. É nítido que estão me observando, é nítido que estão observando entre minhas pernas. A expressão de alguns homens é curiosa. Sou considerada por eles “uma gostosa”. Quando têm uma imagem geral de mim logo se excitam, ainda mais quando notam que estou de pernas abertas. Mas quando dão de cara com minha vagina e a enorme quantidade de pelos que ela tem, as reações são adversas. Uns esbugalham os olhos e cochicham comentários nos ouvidos dos outros. Outros se excitam, fazem um biquinho puxando saliva pra dentro, estão vendo a coisa mais gostosa do mundo, ao mesmo tempo põem a mão em seus paus, segurando eles, como se não fizessem isso, seus pintos pulariam da calça e correriam em minha direção. Alguns dão risadas escandalosas, fazem chacota dos meus pelos. Outros evitam olhar, na verdade acabam olhando rapidamente, de canto de olho, levados pela curiosidade, mas como se aquilo fosse proibido.
É nítido o incomodo, o rebuliço geral. Logo os comentários entre todos, homens e mulheres clientes do bar, é que alguma coisa precisa ser feita em relação a mim. Procuram entre si alguém que me conheça e que possa “dar um toque” para que feche as pernas e o episódio seja encerrado.  
A primeira pessoa que veio, foi uma conhecida da época de faculdade. Nunca fomos amigas, mas sempre mantínhamos um diálogo cordial.
- Oi Mari, tudo joia? – disse ela.
- Sim – respondi.
- Então, você não deve ter percebido, mas as pessoas tão vendo que você tá sem calcinha. Vim aqui só te dar um toque pra você fechar mais as pernas.
- Percebi sim, e to com as pernas abertas porque quero. Não sei se você reparou, mas desde que cheguei aqui, notei que nessa esquina, a todo momento homens assediam mulheres, querendo forçar sexo com elas. Talvez ninguém tenha mesmo reparado nisso, penso que é necessário “dar um toque” neles também.
Quando era criança minha vó um dia disse, que iria ensinar a me portar como uma mulher. Isso significava seguir todo um protocolo de submissão e mutilação do meu próprio corpo. Aquelas lições vindas de minha vó sempre me deixaram realmente confusa, afinal diversas vezes eu assistia ela chorando num canto da casa, logo após ter sido espancada por meu avô na minha frente. Não compreendia por que deveria preparar toda minha vida em pró de alguém que no fim me faria chorar solitária.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina peluda exposta.
A segunda pessoa que veio foi outra mulher. Dessa vez uma desconhecida e que estava furiosa.
- O minha filha é o seguinte. Ninguém aqui é obrigado a ficar olhando pra sua periquita cabeluda não.
- Então quer dizer que o problema são meus pelos? Sugiro que todos arranquem seus olhos. Se disserem que os olhos lhe são essenciais para o corpo, digo o mesmo sobre meus pelos e não serei eu a primeira a arrancar alguma coisa aqui.
- Ah entendi, você é dessas feministas que acha que pode fazer o que quer e acha bonito fazer esse tipo de coisa.
Quando era adolescente, estava em casa cuidando de minha sobrinha recém nascida, na casa só havia eu e ela. De repente meu cunhado chegou e notando que para além da nenê só havia eu e ele, começou a insinuar-se para mim querendo que transasse com ele. Fui desconversando e tentando me afastar enquanto ele me perseguia. Acabei ficando encurralada em um cômodo, ele já estava com o pau para fora e dizendo que se eu não desse para ele, contaria para meu pai que me vira na rua com um namoradinho. Provavelmente meu pai me surraria ao descobrir que estava namorando escondido. Continuei negando transar com ele e através de muito esforço escapei por pouco de um estupro. Quando denunciei o caso para toda família, ao invés de ser acolhida, os comentários que recebi, das minhas próprias tias, foram questionamentos sobre a roupa que estava usando, que uma menina do meu tamanho, que vivia provocando um homem como ele, sabia no que aquilo ia dar.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina peluda exposta.
A terceira pessoa que veio, foi um homem extremamente bêbado.
- Como é que é? Você tá procurando alguém pra te comer, é isso? Se quiser oh, eu resolvo seu problema agora – fazia isso segurando o pinto duro dentro da calça e balançando pra mim.
- Não, não quero ninguém pra me comer, muito menos o senhor, que é óbvio que nunca soube dar prazer pra alguém. Além do mais não preciso de nenhum homem para me satisfazer sexualmente. Conheço muito bem o meu corpo e sei como proporcionar prazer a ele.
- Olha aí gente, além de puta é sapata também!
Na faculdade namorava um rapaz que se dizia de esquerda e libertário. Várias vezes fui estuprada por ele. Afinal fui ensinada pela minha vó a nunca negar sexo ao meu macho. Todas as vezes que ele queria sexo e eu não queria, ele insistia, ia empurrando seu pau pra dentro de mim, até o ponto que eu infelizmente cedia. Pensava na época que aquilo era só mais uma transa onde eu não me satisfazia, afinal, ser satisfeita sexualmente, era uma experiência que ainda não conhecia. Sem contar as inúmeras vezes em que me manipulou para que conseguisse amigas minhas para transar com nós dois, dizendo que aquilo era “amor livre”. Ao mesmo tempo, todas as vezes que me aproximava de outros rapazes, era acusada de estar desrespeitando o nosso relacionamento e a ele.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina peluda exposta.
O quarto que veio, foi o dono de um dos bares.
- Escuta aqui, eu não quero saber dessa pouca vergonha no meu estabelecimento não. Você pode se retirar mocinha!
- Até onde eu sei a rua é pública. E o senhor falando sobre pouca vergonha é um tanto engraçado. Quantos anúncios de mulheres que têm seus corpos mercantilizados só pra poder vender cerveja têm no seu bar? Como é que funciona? O tamanho da bunda é proporcional ao sabor da cerveja?
- Então tá bom, a hora que a polícia chegar você fala isso pra eles.
A figura do Estado. Os inúmeros policiais que riem da cara de mulheres que denunciam situações de abuso e violência, afirmando que não podem fazer nada, afinal isso é assunto doméstico. O mesmo Estado que joga ano a ano milhares de mulheres na cadeia, deixando as mesmas esquecidas, tratadas como bicho, sem o mínimo de dignidade para o corpo feminino. Estado que teve a maioria de suas leis cunhadas por mãos de homens e que também tem a maioria dos seus cargos de chefia ocupados pelos mesmos. É esse o Estado que se diz neutro e que é para todos. A minha visão se turva não sabendo enxergar a diferença entre esse Estado e um coronel patriarca.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina peluda exposta.
Então, a polícia chegou. Todos os policiais eram homens. Sabia que não demoraria muito para que me tirassem dali. Quando os gorilas começaram a se aproximar, num espasmo meu corpo se ergueu, consequentemente minhas pernas fecharam. Houve então em toda rua uma convulsão de aplausos. Comemoravam alegremente aquele fechamento de pernas. A única reação que meu próprio corpo conseguiu esboçar foi a de selar meus olhos e correr um pesado pranto vindo deles. No mesmo instante senti que meu sexo também começou a chorar. Uma torrente de sangue escorria pelas minhas pernas, formando poças no asfalto em torno dos meus pés.
Os aplausos cessaram e foram substituídos pelos gritos de horror. Porém pude perceber que entre os gritos, algumas poucas mulheres choravam junto comigo. Em número menor ainda, alguns homens finalmente se calaram. Senti então as pesadas mãos dos policiais me puxarem e no mesmo instante desmaiei.

Quem vos fala é um homem.


Que o horror seja gerado não pelas pernas que se abrem. Mas pelo conteúdo das bocas que gritam denunciando toda forma de abuso!




Para minha irmã

Uberlândia, 13 de fevereiro de 2016.

Irmã, por onde andas? Sinto tanta falta de ti. Que vontade imensa de num único abraço trocarmos o todo necessário. Esse mundinho nosso anda tão tenso, de pernas pro ar. É como se a lama que varreu de morte o nosso rio, estivesse se espalhando entre nós.
Tenho medo de dizer isso pessoalmente e ferir teu espírito. Construístes teu santuário? Tenho certeza que sim e que gerastes belos frutos. Que bonita tua relação com a cria. Descobres no seu filho a ti mesma e ao próprio germe do mundo.
Dessa vez irmã, sigo sereno. Não te procuro, como tantas vezes fiz, para deitar  pranto em teu ombro. Em tantos ciclos de desespero, aprendi a meditar. Só me é ainda muito difícil achar o equilíbrio. Encontrastes o teu? A firmeza material e da palavra política aliada a eterna paciência e ao respeito fraterno?

Hoje irmã, sentei em roda com membros de uma tribo muita antiga. Não entedia o porque, mas ficamos por horas simplesmente calados. Todos usavam mascaras e eu fitava cada uma delas. Aterrorizado, em certo momento descobri que se tratava do nosso próprio povo.
Calmamente um a um retirou sua máscara e em mil anos contaram-me a história de suas vidas. Quanto tempo passei ali, calado, ouvindo aqueles relatos. Tenho certeza que você gostaria de estar lá. Hoje percebi algo que tu já compreendes. A história que contam por aí não é a história de nosso povo. Mas do que isso, o que aconteceria se todos nós soubéssemos a nossa verdadeira história? Um gigantesco urro irmã, um gigantesco urro.


Lembra daquela vez em que dançávamos em roda?

do seu maluquinho de sempre,

Te amo!